De Deodoro para o Chipre com escala no Planalto: empresa do vencedor da licitação do autódromo tinha conexões com sócios da lavanderia russa de dinheiro
Três meses antes do resultado da licitação, JR Pereira foi recebido pelo governo de Jair Bolsonaro para discutir uma pauta que aparece na agenda como consumada: a “implantação do autódromo em Camboatá”.
É o que mostram os registros da Secretaria Especial de Esportes do dia 27 de fevereiro.
O então titular da pasta, agora parte do Ministério da Cidadania, general Marco Aurélio Costa Vieira, foi o anfitrião da reunião marcada para às 17h30 daquela quarta-feira com o presidente da empresa que viria a ganhar a concorrência no dia 20 de maio.
A demonstração de força do empresário nos bastidores do novo poder executivo não ficou por aí apenas. Duas horas e meia antes, JR Pereira (foto abaixo) tinha sido recebido no Anexo II, ala B, do Palácio do Planalto, pelo vice-presidente da república, general Hamilton Mourão.
Muito pouco tempo depois, o assunto da reunião secretaria de esportes apareceu com força em um discurso de Jair Bolsonaro.
Era 8 de maio, comemoração do Dia da Vitória na 2ª Guerra Mundial, quando Jair Bolsonaro, ladeado por militares, pelo governador Wilson Witzel e prefeito Marcelo Crivella, em improviso proferido na cerimônia realizada no Aterro do Flamengo, fez anúncio inesperado: que o GP de Fórmula 1 deixaria São Paulo e viria para o Rio de Janeiro. E que em seis, sete meses de obras um autódromo estaria pronto em Deodoro, subúrbio da Central.
Dia 20 de maio, doze dias depois do tal discurso que parecia descolado da pauta presidencial e perdido numa cerimônia de homenagem aos pracinhas, saiu o resultado do vencedor da concorrência para a construção do novo complexo.
Para surpresa geral, uma empresa absolutamente desconhecida arrebatou a concessão de 35 anos, no valor de R$ 697.400.000,00 (seiscentos e noventa e sete milhões e quatrocentos mil reais), para explorar o autódromo a ser construído por ela em Deodoro. O espanto se justifica: a vencedora Rio Motorpark Holding S.A. foi constituída pouco tempo antes, em 17 de janeiro deste ano.
Exatos 11 dias antes da abertura da licitação, no dia 28 de janeiro de 2019, como mostrou reportagem do G1, de Felipe Grandin e Gabriel Barreira. E que um mês depois de constituída, já estava em audiência no Palácio do Planalto tratando sobre a “implantação do autódromo”. A reportagem do G1 mostrou ainda que JR Pereira é sócio da Crown Assessoria e Consultoria Empresarial S.A, que elaborou os estudos para o edital da disputa ganha por ele mesmo.
CRONOGRAMA:
11/12/2018 – publicação do aviso de licitaçao no Diário Oficial do Município.
17/1/2019 – a Rio Motorpark holding S.A é constituída na Junta Comercial do Rio de Janeiro (JUCERJA).
28/1/2019 – é aberta a licitação.
27/2/2019 -JR Pereira, apresentado na agenda como presidente da Bravo Industries, é recebido em audiência às 15h pelo vice-presidente general Hamilton Mourão.
27/2/2019 – Em seguida, às 17h30, é recebido na Secretaria Especial do Esporte, cujo titular era o general Marco Aurélio Costa Vieira. Na agenda consta a pauta “Implantação do Autódromo em Camboatá(RJ)”.
8/5/2019 – Bolsonaro assina compromisso e anuncia que o GP de F1 virá para o Rio e autódromo de Deodoro será construído.
20/5/2019 – a Rio Motorpark holding S.A é anunciada como vencedora da licitação.
Eram as peças se encaixando: a agenda de JR Pereira no Palácio do Planalto com o general Mourão e depois com o secretário de esporte, o discurso inesperado do presidente sobre a construção do novo autódromo, o anúncio do vencedor da licitação. Mas a montagem do quebra-cabeças não diminui o mistério por algo tão inusitado.
Uma empresa recém-montada e já com tantos feitos.
Uma licitação controversa. Um sócio misterioso com histórico de representar empresas em negócios de milhões nas Forças Armadas brasileiras.
As conexões com paraísos fiscais e com a “Troika Laundromat”, a máquina de lavagem de dinheiro dos magnatas russos:A teia montada pela Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo, com auxílio da base de dados de consórcios estrangeiros de jornalismo investigativo, mostra conexões ainda mais surpreendentes: no fim desse emaranhado, as pontas passam por paraísos fiscais como Delaware (EUA), Chipre e chegam a conexões com empresários envolvidos com a “Troika Laundromat”, como é conhecida a máquina de lavagem de dinheiro por trás de magnatas russos, como revela longa e detalhada apuração.
É nesse cenário turvo e pouco transparente que está sendo decidido o destino de uma floresta, onde se erguerá o futuro Autódromo de Deodoro, zona oeste do Rio de Janeiro. Que virou a menina dos olhos do governo federal.
Mais do que isso: uma causa pessoal de Jair Bolsonaro. Como o porte de arma, os cortes na educação, as pautas de costume, a embaixada para o filho e a liberação das licenças ambientais.
A recém-criada e vencedora da licitação Rio Motorpark holding S.A aparece na junta comercial do Rio tendo como sócios José Antônio Soares Pereira Júnior, o presidente, que se apresenta como JR Pereira e Luiz Fernando Mendes de Almeida Neto, diretor.
O que explica em muito a surpresa geral diante do anúncio dos vencedores. Ilustre desconhecido para o público em geral e no noticiário brasileiro até então, o presidente da empresa constituída às vésperas da licitação tem boa parte dos negócios que representa com sede no exterior e relações comerciais no Brasil com o meio militar. E milhões em transações com o Ministério da Defesa, o mesmo que responde em última instância pela área de Deodoro doada para pista.
Na rede social Linkedin, JR Pereira aparece como “presidente e CEO” da Bravo Industries, que tem ainda as subsidiárias Bravo Defesa, Bravo Cargas, and Bravo MRO, desde agosto de 2015.
Nos registros da Junta Comercial da Virgina (EUA), JR Pereira aparece como o “gerente” da Bravo DefesaA Bravo Industries tem registro nos Estados Unidos no estado de Delaware, cuja legislação protege o anonimato dos sócios. Um paraíso fiscal dentro do país. No entanto, a reportagem obteve os dados da subsidiária Bravo Defesa, esta também com matriz em Delaware mas filial na Virgínia.
Nos documentos da filial, referendados em documento pelo estado de Delaware como parte da matriz, pode-se constatar que JR Pereira aparece como gerente da empresa. Diante de tal registro, a reportagem perguntou a JR Pereira, através da assessoria de imprensa, se existe alguém acima dele na empresa não apontado nos papéis. O empresário negou. (ver “outro lado” ao fim da reportagem).
A Bravo está inscrita na Virginia desde abril de 2016. Poucos meses depois, em outubro, a Bravo comunica oficialmente, através de JR Pereira, a compra da empresa brasileira Consub Soluções em Tecnologia, líder em vendas para a América do Sul em equipamentos de combate militar naval e sistemas de comando e controle.
No mesmo abril de 2016 em que aparece a inscrição no equivalente a junta comercial da Virgina da Bravo, a Consub aparece realizando transação comercial com o Comando da Marinha, cujo órgão superior e responsável pela transação é o Ministério da Defesa.
Empresa de JR Pereira tem negócios milionários com as Forças ArmadasEntre abril de 2016 até aqui, de acordo com o Portal da Transparência, a Consub já vendeu R$ R$ 44.175.884,78 (quarenta e quatro milhões, cento e setenta e cinco mil, oitocentos e oitenta e quatro reais e setenta e oito centavos) para o Ministério da Defesa.
Entre os sócios da Consub, aparece a ATP Participações, que, através da ATP Engenharia, já recebeu do governo federal na última década R$ 312.232.471,16 (trezentos e doze milhões, duzentos e trinta e dois mil, quatrocentos e setenta e um reais e dezesseis centavos).
As conexões de JR Pereira no exterior cruzam fronteiras muito além de Delaware. É no Chipre que a reportagem encontrou outras tantas teias e vasos comunicantes nos negócios do vencedor da licitação do Autódromo de Deodoro.
Espécie de primo esquecido da União Europeia, o Chipre passou a frequentar o noticiário do primeiro mundo pelas portas dos fundos com mais intensidade depois que virou o endereço preferencial e paraíso fiscal dos bilionários russos, muitos deles partes da conhecida máfia russa, para lavar as fortunas obtidas nas famosas tenebrosas transações que se formaram ali principalmente após o processo de privatizações depois do fim da União Soviética.
Caminho certo para capitais incertos desses bilionários emergentes, o Chipre transformou-se em etapa importante na rota do dinheiro de todos eles. Um caminho que geralmente tem várias fases, pulando de paraíso fiscal em paraíso fiscal e diluindo a rota traçada com objetico de dificultar o rastreamento desse dinheiro. São as chamadas “camadas”, etapas fundamentais para o branqueamento de capitais. Assim, o “siga o dinheiro” dos bilionários russos passa na maior parte das vezes pelo Chipre como etapa dessa teia de paraísos fiscais onde vão sendo abertas empresas de papel para o dinheiro percorrer.
O caminho de lavagem de dinheiro mais conhecido dos bilionários russos foi a “Troika Laundromat”, a “Lavanderia Troika”. Um sistema revelado pelo consórcio de jornalismo investigativo da OCCRP, iniciais para “Organized Crime and Corruption Reporting Project” (Projeto de Relatório de Crime Organizado e Corrupção”).
A lavanderia russa foi responsável pela inserção e por lavar capital que estava fora do mercado por terem sido obtidos ilegalmente. A principal via desse canal era o “Troika Dialog”, daí o nome. Um banco que enviava para fora da Rússia milhões de euros, que iam se espalhando através de empresas fictícias, as empresas de papel, por paraísos fiscais.
O esquema de lavagem foi criado em 2006, ocasião em que várias empresas para tal fim foram formadas no Chipre, e funcionou até 2013, quando revelado.
Nesse país a reportagem encontrou o registro de uma empresa de JR Pereira, criada em 2006. (O empresário, através de sua assessoria de imprensa, afirma que a empresa foi dissolvida em 2006. Já os documentos obtidos pela reportagem no equivalente a Junta Comercial daquele país mostram a Depayens Investments e Aquisitions fundada em 22/8/2006 e dissolvida em 11/1/2016. Ver “outro lado” ao fim da reportagem).
No fim da linha, cruzando várias empresas, endereços repetidos e acionistas, é possível identificar vasos comunicantes da Depayens com o caminho de Mark Kurtser, um dos maiores magnatas russos da atualidade, apontado por suas ligações na “Troika Laundromat” pela base de dados da OCCRP consultada pela Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo. O homem à frente do Rio Motorpark holding, vencedora da licitação do autódromo, aparece como diretor da Depayens Investments e Acquisitions LTD. E Mark Kurtser tem registrada a MD Medical Group Investments, com acionistas como a Menustrust que se conectam e outros que também aparecem em sociedades no mesmo endereço da Depayens.
A teia das empresas no Chipre que irão se cruzar com a empresa de JR Pereira:
JR Pereria:
Em 22 de agosto de 2006, JR Pereira aparece como diretor da:
Depayens Investments & Acquisitions LTD
Entre os sócios da Depayens Investments estão:
Elia Nicolaou e a empresa Briantserve Limited
São sócios da Briantserve Limited:
Elia Nicolaou e Mario Tofaros
A sócia Elia Nicolaou e Mario Tofaros aparecem também na:
Westutrecht IP Limited
Que entre seus sócios tem a:
Menustrust Limited
Que é sócia também da:
MD Medical Group Investments
Que tem entre os acionistas, além da Menustrust:
Mark Kurtser
A apuração da reportagem sobre a teia acima não indica necessariamente que JR Pereira é sócio de Mark Kurtser. Mas sim que em algum momento os caminhos societários de JR Pereira se cruzam com Mark Kurtser, apontado pelo OCCRP por suas relações com a “Troika Laundromat”.
Outro lado:
A reportagem formulou as questões abaixo para JR Pereira através da assessoria de imprensa, que enviou as respostas que seguem:
1- JR Pereira se apresenta no Brasil como “presidente da Bravo Industries”. Nos Estados Unidos aparece na empresa e suas subsidiárias como “gerente”. Há alguém acima dele no organograma da empresa?
R- JR Pereira é Presidente e CEO da Bravo Industries e também é o manager da empresa. Não há ninguém acima dessa posição no organograma.
2- Qual era o ramo de atuação da empresa que JR Pereira tinha participação societária no Chipre?
R- JR Pereira foi Diretor de uma empresa de investimentos e aquisições no Chipre. A empresa foi dissolvida em 2006.
3- Se o Sr JR Pereira tem alguma relação comercial com o russo Mark Kurtser?
R- Nenhuma.
4- No dia 27 de fevereiro, JR Pereira foi recebido no gabinete do vice-presidente, General Hamilton Mourão. Em seguida, na secretaria de esporte. Quais eram as pautas?
R- A audiência com o vice-presidente foi em nome da Bravo. Por se tratar de uma empresa da área de segurança, não posso tecer comentários sobre a pauta. Na Secretaria de Esporte o tema era o projeto do autódromo do Rio de Janeiro.
Nota da redação:
No dia seguinte a publicação, o senhor JR Pereira entrou em contato com a reportagem e enviou o seguinte trecho abaixo, acrescentado em 26 de julho, às 14h40:
“JR Pereira, durante os governos Lula e Dilma, trabalhou ou participou em todos os projetos da Estratégia Nacional de Defesa (END) do Brasil, compreendendo Marinha, Exército e Aeronáutica. Todos os programas de defesa e inteligência nacionais superam em valores a casa de bilhões de dólares. Durante este período, JR Pereira participou desses projetos como representante exclusivo de empresas norte-americanas”.
Excelente reportagem!
Olá Lúcio! Mais uma vez “matando a cobra e mostrando a cobra morta”. Há meses venho diariamente consultando o Sportlight, pois sabia que viria algo em relação a este “autódromo”. Aguardo a continuação da reportagem. Parabéns pelo trabalho!!!
Esse governo se acha mais limpo que os outros. Essa nota que ele enviou no dia seguinte dizendo que trabalhava com Lula e Dilma é muito estranho. Estamos trabalhando com JR hoje mas ele também trabalhava com o Lula e a Dilma também. Criticava o outro governo mas continua com as mesmas práticas . Aff
Muito boa reportagem.
Impressionante as conexões e a entrada política em 3 governos!
Será ele o nosso “senhor das armas”?
Meus parabéns.