“Futebol, do sonho à realidade”. Uma revolução pioneira no jornalismo investigativo esportivo brasileiro
Oadvogado John Milton foi apenas mais um brilhante papel na carreira de Al Pacino.
E é encarnando o próprio coisa ruim do título de “Advogado do Diabo” que solta a inesquecível frase: “a vaidade é, definitivamente, meu pecado predileto”.
Uma atuação impecável. Não sei onde o protagonista fez o tal “laboratório”, aquela fase onde o ator mergulha no universo do personagem.
Se optou por um lugar onde grassa a vaidade, não teria dúvidas em arriscar: uma redação.
Espécie de lugar insalubre, onde jogos de poder se materializam com muito mais avidez do que a procura por notícia. E o status de cada um se firma muito mais de acordo com a capacidade da ridícula palavra por aqui tão amplamente adotada por hora como se português fosse, o tal “network”. Uma redação seria um pronto e acabado espaço para que Al Pacino saísse apto para entrar em cena, já tão perfeitamente transformado que até o cheiro de enxofre viria acoplado.
Mérito para ele que poderia ter ido muito mais longe se preparando em uma redação e ainda assim brilhou.
É numa redação que você vê aquele menino que chegou ontem e fez duas reportagens deitar regrar sobre o ofício. Pontificar sobre as tábuas fundamentais do jornalismo cheirando a fraldas.
Série teve seis reportagens com temas jamais abordados até entãoFoi numa redação que vi um dos monstros sagrados da profissão, e no caso realmente um monstro sagrado, fazer uma viagem de 20 dias e ao voltar constatar que o foca que tinha entrado há dois meses já questionava a qualidade do material do velho repórter.
Foi numa redação que um menino imberbe desses, tratados como “menino de ouro” e que como tantos outros sumiu na poeira, falou em alto e bom som que não entendia a fama de um consagrado reportero.
O drama só piora, agora tomadas em sua maioria por jovens pernósticos que ainda não aprenderam a casar as palavras do lide mas mostram ao executivo grande capacidade pra fazer a tal planilha Excel, e assim ascendem na hierarquia. E vão fazer o que é música no ouvido dos superiores: cortar custos, cortar gente. O jornalismo, esse dinossauro, a quem importa?
Nas tantas palestras que acabamos fazendo por aí pra turma que ainda insiste em fazer o tal jornalismo, tenho por agora dito: “quer ter êxito na profissão? Devore as lições de como fazer a tal planilha Excel. Domine todos os segredos dela. Você será o número um, com certeza”.
É nesse quadro dramático que acelera a cada dia a tal irrelevância mundial a qual nosso jornalismo tem se transformado e que volta e meia falo por aqui, baseado em observação mundo afora, que outra faceta surge ainda mais inacreditável. E patética.
É quando se vê numa redação alguém achando que inventou a roda. E na certeza de que antes nada se fez. E que antes era algo muito primário.
Por isso é imagino que deveria ser necessário uma cadeira universitária nos malfadados cursos de jornalismo sobre a história do mesmo, o que se fez, quem fez. As grandes lendas, os monstros…
E os primeiros dias de estágio em redação deveriam ser na pesquisa. Para que tomasse um banho de imersão sobre quem foram “os linhas de frente de toda essa história”, como no “Moleque Atrevido” de Jorge Aragão.
Saber que muita coisa espetacular foi feita. Em proporção muito maior do que a irrelevância dos dias atuais.
Hoje, qualquer conversa do tipo das letras acima vira um embate entre o velho e o novo. Coisa dos nostálgicos. No meu caso em particular, de um tempo até que nem vivi. Mas por isso mesmo aprendi que é preciso beber na fonte, respeitar.
Existem caminhos fascinantes nos dias de hoje, quem há de desconhecer? Milhões de possibilidades. Há também um rigor maior na maioria dos casos, que veio com o avanço da própria sociedade e das técnicas. Mas há no passado minas de ouro que devem ser tão conhecidas como o futuro.
Vou a uma delas. Pelo absoluto pioneirismo, pelo ineditismo, pela coragem em mergulhar no universo do futebol como nunca se tinha feito, pela imensa qualidade literária, pela capacidade de enxergar que o futebol não era algo isolado e sim um fenômeno social em que estava refletida a sociedade e um tempo, é preciso resgatar a pioneira.
Creio não haver dúvida e depois de revirar arquivos e muito ouvir e conversar na velha guarda, poder afirmar: a primeira grande reportagem investigativa realizada numa editoria de esporte no Brasil. 1963.
Por honestidade intelectual, e obviamente essa informação é mais do que necessária aqui embora sem alterar o fato histórico, é preciso dizer o óbvio: que o sobrenome de um dos autores revela a óbvia ligação do Castro de um dos autores da reportagem com o escriba destas mui modestas linhas.
Pois foi de Marcos de Castro e Dácio de Almeida a primeira grande reportagem de investigação de uma editoria de esporte na imprensa brasileira.
“Futebol, do Sonho à Realidade” é um ato fundador da imprensa brasileira.
Em pleno 1963. A imprensa do país ainda se acostumando a novas técnicas vindas com atraso já do jornalismo americano, o lide sendo incorporado nas reportagens e a respectiva hierarquização dos fatos na pirâmide invertida, os primeiros anos da revolução da grande “reforma gráfica” do JB…E no meio dessa efervescência, uma revolução vem em forma de uma série de reportagem da editoria de esportes do JB. Era algo diferente de tudo o que tinha sido feito até então. Algo inacreditavelmente revolucionário. E espetacular.
Foram seis reportagens. De uma beleza gráfica e qualidade de imagens difíceis de serem reproduzidas. Mas acima de tudo, apontando para apuração e mostra de temas até então jamais apontados. Tabus.
Estavam lá nas seis reportagens da série: o duro retrato da realidade do futebol brasileiro e os salários muito longe do glamour. Um profundo quadro do que era essa realidade. Estava lá um retrato do sistema e sua escravização dos jogadores, a infantilização dos homens, a sujeira de cartolas. Tinha o drama das aposentadorias, o dopping, até hoje tabu, e já firme em 1963. E a ação perniciosa de empresários, ali, inteira, pela primeira vez demonstrada. Com nomes, fatos.
A reportagem ganhou o Prêmio Esso naquele ano. Ganhou o mundo. (Na foto do topo, Marcos de Castro recebe o Prêmio Esso. E na última foto abaixo, festeja com os colegas na redação do Jornal do Brasil. Dácio de Almeida não está nas fotos porque se encontrava em cobertura na Europa com a seleção brasileira. Os jornais noticiam que jornalistas do mundo inteiro envolvidos na cobertura comemoraram com ele a notícia do prêmio).
Nas palavras de João Máximo uma década depois, no Correio da Manhã, era o surgimento da brilhante segunda geração do jornalismo esportivo brasileiro. A primeira não fora menos brilhante. No entanto, com o olhar e hábitos ainda mais ligados a crônica, como Nelson Rodrigues e o irmão Mário Filho.
Esta segunda geração foi a primeira voltada para tal tipo de reportagem. Algo que João Máximo chamou de “semente da Semana de Arte Moderna do jornalismo esportivo brasileiro” tamanha foi a revolução. Depois viria a terceira geração, capaz de aprofundar tais práticas, como José Trajano, Marcio Guedes, Juca Kfouri, Alberto Helena e tantos outros.
Quis o destino dramaticamente que o jornalismo perdesse muito moço ainda aquele que era, no depoimento de tantos colegas, um dos repórteres mais brilhantes de sua geração, a alma do repórter furador encarnada em um homem. Brilhante repórter, homem maior ainda, valeu-se do bom relacionamento que tinha com a comissão técnica da seleção brasileira de 70 e seus militares para conseguir salvar colegas que padeciam na tortura, tarefa realizada também por João Saldanha. Dácio de Almeida, prematuramente morto antes de completar 50 anos. Suficiente para deixar o nome na história do jornalismo brasileiro. Com o parceiro, em “Futebol, do sonho à realidade”, embora não soubessem, estavam fazendo uma revolução.
Cadê o livro com essas seis reportagens??? Precisamos ler e que outros leiam. A crônica esportiva brasileira hoje, na minha opinião, é um fracasso maior até que os 7×1… ou o fracasso dos 7×1 também é responsabilidade da crônica (não dá de falar jornalismo, só porque é feita por formados em comunicação social) esportiva atual.