25 de junho de 1978: há quarenta anos uma final de Copa era jogada a poucos metros de um campo de concentração
Algemada e sob o olhar de suas companheiras e de seus algozes, Loli cruzou toda a extensão do campo de concentração da ESMA (Escuela Superior de Mecánica de la Armada). Corria o ano de 1978. Quarenta anos completos nesse 2018. Já vai longe no tempo mas quem viveu aquele horror lembra de cada passo.
A cena não poderia ser contada com mais exatidão e uma imensa trágica beleza por uma sobrevivente do genocídio ocorrido na Argentina naqueles anos entre 1976 e 1983, quando a mais sangrenta ditadura deste continente se instalou por lá.
Ana Maria Ponce, a Loli, então com 26 anos e uma vida inteira pela frente, foi chamada pelos oficiais. Ali todos sabiam que quem era chamado partia sem volta. Embarcava nos voos da morte, jogados dos ares no Rio da Prata. Loli sabia disso ao ser chamada. Já tinha acontecido com tantos. Trinta mil morreram no total.
Um dilacerante relato, palavra por palavra, daqueles últimos passos. Assim contada: “Foi com dignidade. Caminhando como uma rainha. Apesar dos grilhões. Com seus olhos claros, a pele branca e mais livre do que seus assassinos”.
Caminhando como uma rainha. Mais livre do que seus assassinos. Quarenta anos depois, Loli segue assim: mais livre que seus assassinos, os genocidas de quem nenhum dos seus tem orgulho.
Dilacerante também é o poema que Loli escreveu pouco tempo antes de ser assassinada e está no fim desta crônica. Foi a coragem de Graciela Daleo que preservou essa memória de um tempo sangrento e cinza, que alguns com DNA de genocida gostariam de ver renascidos em ditaduras extemporâneas.
Graciela Daleo, professora universitária, sobrevivente da Esma, tem latente na pele todas as marcas de ser uma sobrevivente de um campo de concentração. Mas é uma das melhores conversas e mais agradáveis que alguém pode encontrar por aí. Naqueles dias em que não se sabia quem iria sobreviver para contar, ou se alguém iria sobreviver, Loli rascunhava suas memórias do cárcere. Antes do chamado dos facínoras, conseguiu passar seus rascunhos para Graciela. Um desses poemas fala daqueles dias no campo de concentração, da vontade de ver o mundo que nem se lembrava mais.
A Argentina ao menos tratou de cuidar da memória e de seus campos de concentração. A ESMA hoje é um lugar de memória sobre o genocídio e tortura ali praticados. Para se ter a dimensão do quanto ficamos longe e de quanto isso nos custa quando vemos a memória aviltada em vivandeiros da ditadura, era algo como se o centro de tortura do quartel da Barão de Mesquita, na Tijuca, fosse hoje um centro de memória e não seguisse como um quartel. Seguimos longe disso. Essa copa os argentinos venceram.
Nessa segunda-feira que chega, 25 de junho de 2018, é preciso lembrar de exatos quarenta anos atrás, aquele 25 de junho de 1978. Ainda mais quando se está também em meio a uma Copa do Mundo.
Naquele dia que volta no tempo essas quatro décadas, um Mundial era jogado na Argentina. A poucos metros do campo de concentração da ESMA, nesse mesmo 25 de junho, Argentina e Holanda disputavam a grande final no Monumental de Nunez, o campo do River Plate. Não é força de expressão. Uma breve olhada no mapa (ver abaixo) e a pergunta: como foi possível uma Copa onde a final foi disputada ali tão próximo a um campo de concentração?
Nenhum daqueles 71.483 ali presentes, vibrando com o primeiro título mundial do time da casa depois daqueles 3 x 1 conquistado em emocionante prorrogação podia ouvir os lancinantes gritos que vinham das masmorras ali perto. Mas eles aconteciam.
Quarenta anos depois, pode parecer difícil de acreditar que uma final de Copa do Mundo era disputada a poucos metros de um campo de concentração.
Pode parecer difícil acreditar em tanta coisa daquilo.
Na kafkiana cena relatada por Graciela Daleo no capítulo “Argentina” do “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Anos do Condor” na qual alguns presos, Graciela entre eles, foram retirados da Esma após o jogo para que os algozes mostrassem a festa do povo. Do pensamento que ocorreu a Graciela em um carro engolido pela multidão que gritava “campeão”: “se eu disse a alguém que sou uma presa e estou ali perto, ninguém vai acreditar”.
Havelange negociou e deu aval final para disputa em plena ditaduraÉ difícil acreditar também o quão cúmplice nossos cartolas respondem por isso tudo. Aliás, nem tanto quando se trata de João Havelange.
Glorinha Paranaguá foi mais uma mãe-coragem como tantas foram naqueles dias, como tantas são até hoje, como são as mães.
Nem a barbárie dos anos de chumbo apagou algumas histórias incomparáveis de coragem, dignidade e valentia. Boa parte delas foi escrita por mães, avós e mulheres de vítimas da truculência. Aqui não há espaço para dúvidas: desafiadas em seus instintos mais primitivos, tais como proteger a cria, abrigá-las das intempéries e dos inimigos predadores, descobriram coragem que jamais haviam imaginado.
Mulheres-coragens como Glorinha, como Zuzu Angel, já citada por aqui. Destemida em sua luta pelo filho, capaz de enfrentar o mundo. Outras tantas foram assim, por seus filhos, netos ou maridos. Dona Iramaya Benjamin, a mulher que desconheceu o medo por seus filhos… Dona Helga, com seus três filhos pendurados no colo batendo de porta em porta nas masmorras da ditadura brasileira atrás de seu marido… Outras tantas…
No caso de Glorinha, o filho Pedro e a namorada estavam presos em uma masmorra argentina. Não eram guerrilheiros, nada. Apenas simpatizantes. Embora alguns energúmenos que clamem por ditaduras hoje pareçam não saber, simpatia também não podia. Simpatia, pensar, respirar, tudo podia ser suficiente para morrer.
Aquela mãe-coragem peregrinou meses por cadeias argentinas até encontrar o filho esquálido, prester a morrer, no cárcere de La Plata.
“A cela horrorosa, eu podia ficar lá no fundo. Ele tinha emagrecido horrores, pele e osso. Filho a gente faz qualquer coisa, dá uma coragem que eu não sabia ter, é uma coisa impressionante. Não imaginei que a gente pudesse chegar a isso, mas a gente chega. E coragem pra enfrentar essa gente toda”.
Mulher de um diplomata com boas relações, fez uma última e desesperada tentativa. Bateu na porta de João Havelange, já presidente da Fifa. Faltavam poucos meses pra copa argentina. Mas o mundo já ouvia relatos da barbárie. E muitos ameaçavam boicote e denunciavam a impossibilidade de fazer um mundial onde se matava e torturava.
Na provavelmente aquela que foi a única boa ação de sua vida, Havelange se prontificou a conseguir a libertação do filho de Glorinha. Décadas depois, ela relatou em primeira mão ao “Memórias” como foi a negociação. Obviamente a primeira boa ação da vida de Havelange não poderia ser só uma boa ação. Sabedor de que a Copa estava ameaçada, reuniu-se com o ditador assassino Jorge Videla e negociou. Havelange garantia a Copa e Videla soltava Pedro Paranaguá. Assim foi feito. E assim, com mãos brasileiras sujas de sangue se jogou um mundial enquanto se matava e torturava a metros do campo de concentração. (na foto abaixo, Havelange e Videla)
Sujas de sangue como de hábito também são as mãos da imprensa, tanto daqui como de lá, salvo como sempre também as boas e honradas exceções de sempre, que apontavam o dedo o quanto aqueles tempos permitiam. O mais do que obrigatório “Imagens Nacionais: Representações do Campeonato Mundial de 1978 em Veículos da Imprensa do Brasil e da Argentina”, fruto do mestrado do historiador Álvaro do Cabo, a ser publicado em breve, mostra os veículos brasileiros e argentinos em seus discursos “em defesa da nação”, exacerbadas trincheiras a gritar “patrioticamente” que quem criticava era do contra e não um patriota. Imperdível. Os anos se passaram, já não há mais ditaduras, mas nove copas depois, parece que ficamos por ali. As vozes críticas, qualquer tom crítico em uma cobertura, cada dia menos possível nas nossas empresas de comunicação, seguem sendo da parte “daqueles que só criticam”, os antipatriotas. É a longa duração da história, aquela que Braudel ensinou…
Sujas de sangue também são as mãos de uma das gigantes mundiais de comunicação, a Burson-Marsteller, americana com filial muito bem instalada e no presente cada dia mais próspera no Brasil. Quando o mundo começou a denunciar o genocídio, o ditador Videla pagou US$ 1,2 milhão (um milhão e duzentos mil dólares) para melhorar a imagem do país diante do mundo.
Gigante de comunicação ganhou US$ 1,2 para melhorar imagem da ditadura argentinaIronia das ironias, quando todos já falavam da violação dos direitos humanos, um publicitário de ocasião da Burson-Marsteller teve a sacada que guiou a máquina de propaganda da repressão. O slogan que tanto carrega de deboche e sarcasmo e ficou conhecido mundo afora como a defesa dos militares argentinos: “Os argentinos somos direitos e humanos”. O deboche da gigante americana estava em 250 mil adesivos espalhados pelo país da Copa, além de cartazes e outdoors, como mostram documentos da Comissão da Memória Histórica da Chancelaria, da Argentina. Dois anos antes, em 1976, a Burson-Marsteller tinha instalado em São Paulo seu primeiro escritório na América Latina. Hoje sabemos, financiado com sangue.
Ezequiel Fernandez Moores, o maior repórter da Argentina, foi quem destrinchou as teias de Havelange e ligações com a ditadura de Videla na organização do Mundial. É possível que quarenta anos depois, alguém diga por aí que política e esporte não se misturam. Por isso e por esses, mais do que nunca é preciso contar sobre aquele 25 de junho nesse 25 de junho.
Quarenta anos depois, é preciso contar. E mais ainda porque uma outra Copa do Mundo está em campo, é tempo de pensar naquele outro 25 de junho. Lembrar que uma Copa se jogou a poucos metros de um campo de concentração. Outros 500 campos de concentração existiam ali. Também 500 crianças foram roubadas de seus pais. Criadas como filhos pelos assassinos dos seus pais. Condenadas a mais perversa das permanências: amar o assassino dos seus pais. O sonho comum ao ser humano e desejo maior de perpetuar a espécie e seguir em um filho transformado na sordidez de ter os traços de seu assassino permanecidos em seu filho. A barbárie.
Toda quinta-feira, há quatro décadas, Ercilia Pensado carrega a foto de seu marido, Frederico Gerardo Lunden (foto abaixo) na marcha das Madres de Mayo pela praça de mesmo nome. Eram apenas jovens de vinte e poucos anos. De beleza digna de uma fita de cinema. Um jovem físico dos mais brilhantes. Uma vida pela frente. Numa noite, os assassinos de Videla entraram no lar do jovem casal e levaram Frederico. Pra nunca mais.
Ercilia segue com esse vazio que nunca poderá ser preenchido. Em busca apenas de uma resposta. Um corpo. Com a mais simples das explicações do porque precisa, tanto tempo depois, de uma resposta: “uma resposta do que fizeram com nosso parente. Uma resposta sana para ter uma vida normal”.
Quarenta anos depois, um 25 de junho une Rússia e Argentina. Une duas Copas do Mundo. Une um grito de memória. Une um mesmo grito: Nunca mais.
POEMA DE ANA MARIA PONCE (Loli, vítima do campo de extermínio da ESMA):
Quero saber como se vê o mundo
me esqueci de sua forma,
de sua insáciável boca,
de suas destruidoras mãos,
me esqueci da noite e do dia,
me esqueci das ruas percorridas.
Quero saber como é o mundo,
não recordo dos rostos,
nem das árvores, nem das luzes,
nem das fábricas, nem das praças,
nem da dor lá fora,
nem do riso de depois.
Quero saber como se vê o mundo,
faz tanto que não estou,
faz tanto que meus pés não se cansam pelos passeios,
faz tanto tempo que meus olhos não se queimam com a luz,
faz tanto tempo que sonho
a inapreensível sensação de liberdade,
faz tanto, mas tanto,
que não tenho meu alimento natural,
de vida, de amor, de presente,
e estou, apesar de tudo isso,
apesar de não acreditar,
estou juntando umas palavras,
que me deixem recordar
como poderia ver o mundo…
O mundo esquece rápido. Basta uma alegriazinha .
O horror me fez chorar, me fez gritar : é preciso lembrar, está dor não se esquece jamais! Dia 25 de junho de 1978 ainda está aqui. No Brasil, no mundo, no sangue, nos campos de concentração de toda a humanidade ao lado dos campos de futebol.
Mãos brasileiras sujas com sangue argentino!!! Muitos saudosos destas sombras!!!
Foi um interessante resgate da história da ditadura na Argentina e de dados desconhecido por muitos. Sem contar com o belo poema de Loli. Só a poesia para amenizar a dura realidade porque a América Latina passou.
Lúcio e suas obras, quanta sensibilidade. Para que jamais nos esqueçamos.