Antes dos milhões ganhos com Nuzman na Rio-2016, parceiros de Cabral na República de Mangaratiba superfaturaram nos Jogos Militares
Um consórcio da turma de Sérgio Cabral ganhou milhões com Carlos Arthur Nuzman nas Olimpíadas de 2016. O esquema hoje é amplamente conhecido. Mas cinco anos antes, a chamada “República de Mangaratiba” já tinha se juntado para superfaturar em outro grande evento: os Jogos Mundiais Militares (JMM), realizados em 2011 no Rio de Janeiro. Um verdadeiro laboratório para as fraudes olímpicas dos amigos do ex-governador. No topo da organização dos JMM estavam quadros de alta patente do Exército, atualmente integrantes do governo Bolsonaro.
Presos na Lava Jato por fraudes durante os dois mandatos de Sérgio Cabral, os integrantes da confraria de Cabral conhecidos como “República de Mangaratiba” ou “Turma do Guardanapo”, se valeram da mesma prática e maquiaram contratos estabelecidos com o Comando do Exército (CEX) cinco anos antes, de acordo com relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU).
Depois de se organizarem em uma empresa de nome “Consórcio Alimentar”, registrada em 30 de junho de 2011, um mês antes da competição militar (16 a 24 de julho), alguns membros da “República de Mangaratiba”, que viriam a ser chamados anos depois como sendo “parte de organização criminosa”, amealharam R$ 24.553.226,25 (vinte e quatro milhões, quinhentos e cinquenta e três mil, duzentos e vinte e seis reais e vinte e cinco centavos) em dez contratos tendo como objeto “gestão e administração do programa” estabelecidos com o Comando do Exército. Ver quadro abaixo (Fonte – Portal da Transparência):
DATA ÓRGÃO OBJETO Nº DOCUMENTO VALOR
28/12/2011 COMANDO DO EXERCITO Gestão e Administração do Programa 2011OB801066 8.325.512,20
28/12/2011 COMANDO DO EXERCITO Gestão e Administração do Programa 2011DF800348 517.304,79
29/09/2011 COMANDO DO EXERCITO Gestão e Administração do Programa 2011OB800497 3.763.278,37
29/09/2011 COMANDO DO EXERCITO Gestão e Administração do Programa 2011DF800179 233.830,89
14/09/2011 COMANDO DO EXERCITO Gestão e Administração do Programa 2011OB800465 7.263.390,05
14/09/2011 COMANDO DO EXERCITO Gestão e Administração do Programa 2011DF800163 451.309,95
05/09/2011 COMANDO DO EXERCITO Gestão e Administração do Programa 2011OB800446 1.882.340,95
05/09/2011 COMANDO DO EXERCITO Gestão e Administração do Programa 2011DF800154 116.959,05
23/08/2011 COMANDO DO EXERCITO Gestão e Administração do Programa 2011DF800143 116.959,05
23/08/2011 COMANDO DO EXERCITO Gestão e Administração do Programa 2011OB800417 1.882.340,95
Pelo estabelecido inicialmente na licitação, o valor era de R$ 39.986.000,00 (trinta e nove milhões, novecentos e oitenta e seis mil reais). No entanto, uma auditoria do TCU verificou diversas irregularidades no cumprimento dos contratos entre o Consórcio Alimentar e o CEX. E demonstrou que R$ 15.432.773,75 (quinze milhões, quatrocentos e trinta e dois mil, setecentos e setenta e três reais e setenta e cinco centavos), que iriam ser pagos pela organização dos jogos deveriam deixar de de ser faturados pelo consórcio após tal apontamento do TCU. Ainda corre recurso na justiça por parte do representante do Consórcio.
A “República de Mangaratiba” ficou conhecida como a confraria dos amigos do ex-governador Sérgio Cabral que compraram as sete casas ao lado dele na Praia de São Braz, na chamada Costa Verde do estado do Rio, no município que dá nome ao grupo. Unidos no mesmo modus operandi: saques ao erário estadual em contratos superfaturados e pagamento de propina ao autorizador.
Dois dos mais destacados desse condomínio estão no “Consórcio Alimentar” que superfaturou contrato nos Jogos Mundiais Militares: Marco Antônio de Luca e Arthur Cesar de Menezes Soares Filho, o “Rei Arthur”. Em depoimento prestado na última semana, Sérgio Cabral confessou ter recebido propina de Arthur Soares.
Marco Antônio de Luca é da família à frente da Masan Alimentos e Serviços. Foi preso no dia 1º de junho de 2017, na “Operação Ratatouille”, desdobramento da Lava Jato. As investigações da Força Tarefa da Lava Jato do Ministério Público Federal (RJ) revelaram que o cartel de empresas de alimentos por ele comandado lucrou R$ 8 bilhões nos governos de Cabral e Pezão, ambos presos. Depois foi solto em habeas corpus expedido pelo Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Depois do escândalo, a Masan mudou de nome e passou a se chamar Agile Corp Serviços Especializados.
E o “Rei Arthur” é o homem por trás da Facility, também parte do “Consórcio Alimentar” que levou a licitação para fornecer alimentos nas instalações dos Jogos Mundiais Militares. O “Rei Arthur” foi o único da “República de Mangaratiba” a não ser preso. É considerado foragido pelas autoridades brasileiras e mora nos Estados Unidos. É protagonista também, de acordo com as investigações da Força Tarefa, do episódio de compra de votos olímpicos, quando teria financiado o processo. Com os escândalos, a Facility também viria a mudar de nome, passando se chamar Prol Alimentação.
A licitação para fornecimento da alimentação nas vilas olímpicas e demais instalações dos Jogos Mundiais Militares ocorreu no dia 4 de maio de 2011, dois meses antes do início das competições. Das três propostas concorrentes, uma já foi eliminada de antemão por ser de execução impossível.
Na véspera, dia 3, quatro empresas enviam ofício ao CEX comunicando a formação de sociedade para o processo licitatório: Facility (“Rei Arthur”), Masan (Marco Antônio de Luca), Denjud e Comissaria Aérea. Sob a liderança da Denjud, conforme o documento obtido pela reportagem via Lei de Acesso à Informação (antes do governo Jair Bolsonaro). E com o nome de “Consórcio Alimentar”.
No dia seguinte, data do pregão realizado pelo Comando do Exército, saiu vencedora a “Denjud Refeições Coletivas Administração e Serviços”, líder do consórcio, com proposta final de R$ 39.986.000,00 (trinta e nove milhões, novecentos e oitenta e seis mil reais).
Menos de um mês depois, 1º de junho, o CEX é comunicado sobre a mudança de liderança do Consórcio Alimentar, saindo da Denjud e indo para a Masan Alimentos e Serviços. De acordo com os registros, a Masan ficou com 40% da associação e Denjud, Facility e Comissaria Aérea com 20% cada. A alteração é autorizada pelo CEX, na pessoa do “ordenador de despesas”, coronel Francisco Pinheiro Rodrigues Silva Netto.
A proposta vencedora do Consórcio Alimentar estimou, com anuência da organização dos jogos, um número de oito mil inscritos. E em cima desse número fez o cálculo de refeições a serem servidas diariamente para esta quantidade de participantes. Sendo seis refeições ao dia para essas oito mil cabeças: café da manhã, colação, almoço, lanche, jantar e colação.
Os oito mil estavam superestimados. É o que diz relatório do Tribunal de Contas da União (TCU). De fato foram seis mil inscrições, duas mil a menos. E uma lacuna da organização abriu caminho para esse superfaturamento apontado pelo TCU: simplesmente não havia previsão no contrato com o Consórcio Alimentar de controle por parte da organização. Como está apontado no relatório do TCU: “Pontuo que a própria Administração Militar admite não haver previsão contratual para contabilizar o número de refeições segundo o número de pessoas que efetivamente compareceram aos refeitórios”. Ver trechos do relatório do TCU abaixo:
Diante de tal fato, a equipe de auditoria do TCU recomendou a contagem dos que se serviam de refeições nas instalações da competição. No entanto, a precariedade do controle já era fato. “Por não ter sido dimensionada e treinada para esta atividade, ela foi exercida de forma precária, por meio de contagem manual durante o dia, prioritariamente”, mostra o relatório do TCU.
Relatório do TCU descreve “superfaturamento de inúmeros gêneros alimentícios”O superfaturamento nas refeições dos inscritos nos Jogos Mundiais Militares não se restringiu a diferença entre números de refeições cobradas e efetivamente fornecidas. O preço das mercadorias também foi sobretaxada pelo “Consórcio Alimentar”, como está no trecho abaixo do relatório do TCU, que constatou “superfaturamento de inúmeros gêneros alimentícios”:
Apesar da descrição do TCU, em nota para a reportagem, a Masan afirma que “em nenhum momento, a empresa foi acusada de superfaturamento” (ver íntegra em “outro lado”, ao fim da reportagem”).
O General Jamil Megid Junior, Coordenador Geral dos Jogos Mundiais Militares do Rio participou da esquipe de transição do governo Bolsonaro. Chegou a ser condenado em 2013 pelo TCU, junto com outros cinco militares, a ressarcir a União em R$ 4,3 milhões (valores de 2011, corrigidos até aqui) por outro contrato dos JMM. Em 24 de outubro do ano passado, exatamente entre o primeiro turno das eleições presidenciais (7 de outubro), que apontou ampla vantagem para Jair Bolsonaro, e o segundo turno (28 de outubro), o TCU reviu a condenação. As contas foram então julgadas “regulares com ressalvas”, como está no voto do relator Walton Alencar Rodrigues. Na hierarquia dos jogos, um dos principais nomes era o do atual Ministro da Defesa, Fernando de Azevedo Silva.
Os ganhos dos sócios do “Consórcio Alimentar” com pagadores militares em 2011 não se reduziram aos Jogos Mundiais Militares. Paralelo a nova empresa formada faturar para o Comando do Exército, individualmente a Masan, de Marco Antônio de Luca emitiu nove notas contra o Ministério da Defesa:
14/6/2011 MINISTERIO DA DEFESA Gestão e Administração do Programa 2011GP800049 2772.00
14/6/2011 MINISTERIO DA DEFESA Gestão e Administração do Programa 2011OB800605 20046.60
13/6/2011 MINISTERIO DA DEFESA Gestão e Administração do Programa 2011DF800280 2381.40
19/5/2011 MINISTERIO DA DEFESA Gestão e Administração do Programa 2011OB800390 6358.84
19/5/2011 MINISTERIO DA DEFESA Gestão e Administração do Programa 2011OB800391 29885.19
19/5/2011 MINISTERIO DA DEFESA Gestão e Administração do Programa 2011DF800226 755.38
19/5/2011 MINISTERIO DA DEFESA Gestão e Administração do Programa 2011DF800227 3550.15
19/5/2011 MINISTERIO DA DEFESA Gestão e Administração do Programa 2011GP800042 879.28
19/5/2011 MINISTERIO DA DEFESA Gestão e Administração do Programa 2011GP800043 4132.46
Com o próprio Comando do Exército que comprava do Consórcio Alimentar para os Jogos, a Masan também fez outros contratos além da competição:
30/5/2011 COMANDO DO EXERCITO Gestão e Administração do Programa 2011DF800035 6441.75
30/5/2011 COMANDO DO EXERCITO Gestão e Administração do Programa 2011OB800138 25058.25
Já tendo o “Fundo do Exército” como pagador, naquele 2011 a Masan emitiu duas notas:
OR
2/3/2011 FUNDO DO EXERCITO Administração da Unidade 2011OB800007 8472.09
2/3/2011 FUNDO DO EXERCITO Administração da Unidade 2011DF800002 526.41
E a outra integrante do “Consórcio Alimentar”, a “Comissaria Aérea”, teve 22 contratos com o Comando do Exército além dos firmados como consorciada:
8/8/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011DF804486 4524.48
8/8/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011OB802344 43353.45
11/7/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011DF803817 4368.15
11/7/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011OB801931 70301.13
13/6/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011OB801554 12486.04
13/6/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011DF803203 775.82
30/5/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011DF802789 2823.87
30/5/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011DF802788 562.32
30/5/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011OB801315 27058.30
30/5/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011OB801314 5388.14
26/4/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011OB800814 49037.11
26/4/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011DF802066 3046.92
14/4/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011OB800710 48339.27
14/4/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011DF801798 5044.79
11/2/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011OB800226 54091.73
11/2/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011DF800504 5645.15
9/2/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011DF800482 3657.41
9/2/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011OB800197 58862.29
18/1/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011DF800016 4271.02
18/1/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011OB800017 69000.86
18/1/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011DF800017 4287.38
18/1/2011 COMANDO DO EXERCITO Cooperação com Construção de Infra-Estrutura 2011OB800016 68737.82
Cinco anos depois, o “Consórcio Alimentar” se formaria de novo para abocanhar contratos nos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016. Com os integrantes da “República de Mangaratiba” repetindo o esquema que inaugurara em 2011, nos JMM. Através de três distintos Cadastro Nacional Pessoas Jurídicas (CNPJ), as empresas com ligações societárias e objetos em comum conquistou da turma de Cabral nove contratos com a entidade olímpica presidida por Nuzman.
A união em consórcio foi chamada de “organização criminosa” pela Força Tarefa da Lava Jato do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro na “Operação Unfair Play”, em 2017. Marco Antônio de Luca e Arthur Soares estão repetidamente citados no que foi denominado de “ganha-ganha da organização criminosa” junto aos Jogos do Rio e Sérgio Cabral, como mostram trechos da peça do MPF-RJ:
Outro lado:
Comando do Exército:
A reportagem enviou as questões abaixo para o Comando do Exército, que sintetizou as respostas em uma, abaixo das perguntas:
1-Nos Jogos Mundiais Militares (JMM), o “Consórcio Alimentar”, que ganhou a licitação para fornecimento de alimentação nas dependências das competições e vilas olímpicas, foi formado por empresas também envolvidas em escândalos de corrupção e com alguns dos sócios presos na Lava Jato. Empresas como a Facility, Masan, Denjud e Comissaria Aérea formaram tal consórcio. Gostaria de saber se este CEX desconhecia tais práticas destas empresas.
2- O Tribunal de Contas da União (TCU), diagnosticou superfaturamentos, tanto no preço dos alimentos fixado pelo Consórcio Alimentar como na estimativa de inscritos para os JMMs. Gostaria de saber se os controles do Exército falharam e se houve alguma punição interna aos envolvidos.
3- Além dos 10 contratos que o Consórcio Alimentar teve com o CEX em 2011, naquele mesmo ano empresas de tal sociedade tiveram outros contratos isoladamente com o CEX. Se tal prática não deveria ter sido evitada.
R- Em relação à licitação de empresa para fornecimento de alimentação para os V JMM, a contratação seguiu os trâmites normais da administração. Os controles adequados foram feitos, mesmo em se tratando de um grande evento inédito no país e nas Forças Armadas, realizado no ano de 2011. O tema em questão foi submetido ao crivo do Tribunal de Contas da União, da Justiça Federal, do Ministério Público Militar e do Ministério Público Federal, onde nenhuma irregularidade restou demonstrada e todos os procedimentos instaurados foram arquivados.
Cabe destacar, ainda, que o Exército Brasileiro preza pela legalidade na administração pública, atua com seus órgãos de controle interno e coopera com os órgãos de controle externo.
Masan:
“A Masan esclarece que liderou o Consórcio que ganhou, por menor preço, a Licitação para fornecer toda a logística de alimentação para os Jogos Mundiais Militares de 2011.
Na ocasião, foram construídas e equipadas nada menos que três cozinhas industriais para as vilas dos atletas (Marinha, Exército e Aeronáutica) com seus respectivos refeitórios e abastecidas todas as arenas de competição e de treinamento, além da força de trabalho. Foram disponibilizadas toneladas de alimentos diariamente em regime de buffet (à vontade), como estabelecido no edital, durante as 24 horas do dia. Em nenhum momento, a empresa foi acusada de superfaturamento. Ao contrário, como não recebeu a última parcela, de aproximadamente R$ 13 milhões, a Masan ajuizou ação e espera receber em breve pelo serviço prestado”.
Arthur Soares: A reportagem não obteve contato com Arthur Soares.