Sobre Stuart Angel, a nota do Flamengo e uma breve história de Elke Maravilha republicada
Breve atualização em 2/4/2019:
Stuart Angel foi amarrado a um carro e arrastado pelo pátio da Base Aérea do Galeão, dependência da Aeronáutica. Entre risadas, interrogatório e espancamento, seus algozes, agentes do estado a serviço da ditadura, depois do suplício de arrastá-lo com o veículo, enfiavam a boca do jovem, então com 25 anos, no cano de descarga. A cena foi testemunhada por outros presos de suas celas e fartamente documentada.
Até a data da barbárie que levou Stuart a morte por integrantes das forças armadas é conhecida: 14 de junho de 1971.
Cinicamente, essa mesma ditadura que assassinou Stuart em uma dependência do estado, espalhou cartazes pela cidade do Rio como se procurasse o “terrorista”. Fingindo desconhecer seu martírio.
No dia 27 de fevereiro de 1972, Elke Maravilha, que depois ira se popularizar como jurada do show de calouros de Sílvio Santos, amiga da mãe de Stuart, Zuzu Angel, também posteriormente assassinada pelo regime militar, aguardava um voo para São Paulo no aeroporto Santos Dumont quando viu um desses cartazes. Indignada com a farsa, avançou e rasgou o cartaz.
Foi detida. Nascida na Alemanha, naturalizada brasileira, perdeu direito a tal cidadania por tal ato. Viveu apátrida por anos. A identidade brasileira da artista foi tomada.
Em 2012, mergulhado em arquivos públicos em busca de documentos para realizar a série de documentários “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor”, revirando pastas, encontrei em uma pasta um tesouro, algo que desviou minha pesquisa por algum tempo: a identidade original de Elke. E o exato pedaço de cartaz que ela havia rasgado.
Contei essa história em 14 de dezembro de 2012, às vésperas de lançar a série de documentários. Contada originalmente no site da ESPN.
Sete anos depois, republico tal texto aqui.
Movido pela data, pela inominável ação de um presidente da república que deu ordens para que fatos como a barbárie de Stuart Angel fossem comemorados.
Embora tenha dúvidas, gostaria de acreditar que muitos entusiastas de algo tão ignóbil, tão abjeto, não conhecem histórias como a de Stuart. E tantas outras.
Somou-se a isso a atitude da nova direção do Flamengo.
É difícil qualificar a vileza da nota emitida pelos cartolas rubro-negros. De costas para a história do clube e de sua gente, se apressaram a se dissociarem da atitude nobre de sócios, conselheiros e torcedores que homenagearam Stuart Angel no domingo, 31 de março. No dia em que o presidente do país mandou que a barbárie fosse comemorada, a boa ação desses sócios e torcedores prestou honras ao remador do clube.
A infame nota, que, antes cedo do que tarde, assim que a direção for ocupada por gente mais digna, um dia terá pedido de desculpas para sua nação, se apressa em dizer que nada tem com a homenagem a Stuart porque o Flamengo “não se posiciona sobre assuntos políticos”. Como se posicionar sobre a barbárie fosse se posicionar sobre “assuntos políticos”. Como se posicionar contra o massacre de um atleta do clube por parte do estado fosse algo sobre o qual a instituição não pudesse se posicionar.
Terminam a infâmia declarando que “a homenagem citada na nota foi realizada diretamente por um grupo de sócios e torcedores do Clube, sem nenhuma participação da instituição”.
Resta o consolo em saber que não representam sua gente, o povo rubro-negro.Nem mesmo podem representar a história da instituição.
Que Stuart seja bandeira na arquibancada. Que o busto já existente na Urca vá para a garagem do remo, lado a lado com a do mítico Buck. Ou outro ali se faça. O Flamengo é Stuart Angel e não esses que estão passageiros por ali.
Por fim, abaixo da foto, republico a breve história de valentia de Elke Maravilha.
Elke Maravilha e os anos de chumbo: quando a vida vira filme e volta a ser realidade (texto originalmente publicado em 14/12/2012):
Achava um show de horror. E consequentemente quem fazia parte era bizarro. O ímpeto da infância quase adolescência, somado a umas pitadas de veemencia não fazia distinção entre nenhum jurado do “Show de Calouros” das tardes de domingo, com o comando de Sílvio Santos.
Décio Piccinini, José Fernandes, Pedro de Lara, Aracy de Almeida, Elke Maravilha e por aí ia…Dava tudo na mesma, não tinha nada de bom.
O início da adolescência, os primeiros contatos com a poesia de Noel e a descoberta de que Aracy de Almeida, amiga e maior intérprete do gênio da raça, era muito mais do que aquela maluca que gongava todo mundo, começou a mudar um pouco a percepção das coisas. Didaticamente. Lições de não julgar a essência de alguém e sua obra por uma impressão superficial e outras tantas, quem diría, vindas do auditório do “patrão”.
O tempo passou e apesar das lições, Aracy de Almeida ficou como a única redimida ali. O resto ficou como parte daquele show de horror. Como se ninguém tivesse histórias antes de estar ali, como se muitas vezes circunstâncias da vida não obrigassem a tal.
Até que um dia, nem tanto tempo assim, uma madrugada insone dessas, começa “Zuzu Angel” na telinha. O nó na garganta que o filme de Sérgio Rezende causa acompanhava o desenrolar da fita. Até que de repente, surge Luana Piovani, redundantemente linda no saguão do Aeroporto Santos Dumont enchendo a telinha de graça.
A cena é inesquecível: emocionada, corre até a parede e arranca um pedaço de um cartaz na parede. Compra briga, rasga o pedaço da foto onde aparece a foto de Stuart Angel, codinome Paulo Henrique. Na legenda do cartaz, no melhor estilo velho oeste, os dizeres de procurado e terrorista. Corria o ano de 1972. O personagem de Luana Piovani sabia que Stuart, filho de sua amiga Zuzu já tinha sido assassinado nas masmorras da ditadura um ano antes. Sua revolta era pelo cinismo da farsa de manterem uma procura que sabiam não existir, isentando-se do assassinato e desaparição. E pela qualificação de terrorista. É detida por um militar e levada. No filme a participação de Luana Piovani é tão pequena quanto arrebatadora e intensa. Na vida real, a cena prosseguiu.
O nome do personagem de Luana Piovani? Elke Maravilha. Aquela que parecia mais um ser estranho e sem qualquer coisa na cabeça nas tardes de domingo. O susto com a revelação de que por trás daquela jurada espalhafatosa, quase irritante, estava uma mulher com história, forte, capaz de tal ato nos piores momentos dos anos de chumbo foi tão devastador quanto a cena e o resto do filme.
Daí em diante, vieram incríveis descobertas sobre Elke. Linda, ainda que fosse difícil acreditar vendo seus cabelos fake e roupas extravagantes anos depois, estreitara seus laços com Zuzu porque era uma modelo top então e fizera desfiles para a maison da estilista. E capaz daqueles gestos do filme. A cena ficou guardada com força. O cartaz sendo rasgado, a foto, Luana, a revelação desconcertante sobre Elke…
E eis que um dia desses, absorto em um arquivo público na garimpagem para “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor”, uma das pastas me faz passar pelo mesmo susto ao ver a cena de Elke Maravilha/Luana Piovani rasgando o cartaz e sendo presa: o pedaço rasgado do cartaz estava ali. Numa viagem tão tortuosa quanto inacreditável: saiu da vida real, da parede do Santos Dumont dos piores momentos de chumbo, virou filme e de repente…Voltou para a vida. Estava ali na minha frente! Exatamente como no filme, só que ali era real. Rasgado, retirado da parede do Santos Dumont. Em um arquivo, aguardando resgate para reestabelecer um pedacinho daquela história.
Deixo tudo mais. Invisto naquela caixa. Está lá o processo e a ficha de Elke Grunupp, a Elke Maravilha. Anexado ao processo, a prova do “crime” de Elke: a foto de Stuart Angel, rasgada do cartaz. Como no filme, só que a da vida real. E no processo, a descrição da coragem de Elke por um próximo, filho de sua amiga. A ira santa num momento da história que não se podía ter ira, não se podia pensar diferente.
No cinismo do processo de Elke, de 29 de fevereiro de 1972, alega-se que o ato dela poderia “prejudicar a localização de Stuart”. Como se não soubessem que Stuart morrera torturado barbaramente nas dependências da Base Aérea do Galeão em 14 de junho de 1971. Arrastado por um carro com a boca pendurada ao cano de descarga.
O processo ainda cita como agravante que “Elke goza das franquias da nacionalidade brasileira mesmo sendo de origem estrangeira”. Em outros arquivos, mais papéis e documentos sobre aquele caso apareceram.
O ato causou a prisão de Elke e a perda de sua cidadania brasileira. Por anos virou apátrida, até que requisitou novamente sua cidadania alemã. Nos anos de chumbo, perdeu importantes trabalhos por isso. Sua carteira de identidade foi retirada.
A perplexidade de estar diante do pedaço de cartaz, a foto que saiu da vida real, virou filme e agora estava ali, na minha frente, naquela caixa de arquivo, ainda iria ficar muito maior, quase uma imobilidade, quando revirei o resto da caixa. Estava lá: a carteira de identidade confiscada de Elke Grunupp, a Elke Maravilha, mulher valente, capaz de um gesto de grandeza e coragem por uma amiga, por uma mãe.
Vítima de uma imensa arbitrariedade, que o tempo ainda há de desfazer. O estado tem uma boa oportunidade para te devolver, com pompa e homenagem, sua identidade. Fica a certeza de que revirarmos arquivos, recontarmos histórias, identificarmos responsáveis e restituirmos identidades tomadas e verdades é uma obrigação de todos.
Te liguei, tentei falar contigo…Queria te contar, Elke: guardei as referências, o número e os dados da pasta. Vai lá no arquivo. Resgata o que a arbitrariedade de um tempo absurdo te tomou. Acima de tudo resgata a memória de um momento seu que valeu um filme e vale muito mais. Guarda esse pedacinho de vida contigo com imenso orgulho.
Cara, parabéns. Nada mais a dizer. Além de também: Força e coragem sempre.
Sensacional! Que história! Quanto ao Flamengo, nojo!
“Quanto ao Flamengo”, não, meu caro. Quanto aos dirigentes estúpidos, sim. A instituição está acima desses caras.
Que falta vc faz na ESPN, meu velho…
Brilhante texto, Lúcio, e encorajador em tempos tão modestos de demonstrações de humanidade.
Que falta faz à ESPN, Lúcio, lúcido, iluminado no jeito de fazer realmente jornalismo!!!!
Grande Lucio, sempre nos fazendo aprender sobre os personagens da nossa história, sob outra ótica.
Parabéns meu amigo!!!
Lúcio, seu trabalho é um exemplo pra jornalistas em geral e focas em particular. Obrigado.
Eu estava lá. Fui preso 1 ano antes do Stuart, no dia 5 de maio de 1970. Era um horror absoluto! E, quando soubemos, ficamos muito assustados com o que poderia nos acontecer. Eu tive sorte de sair ileso sem ter que dedurar ninguém. Dei uma de Romário e me fiz de morto
Caro Lucio boa noite
Parabéns pelo belíssimo , instrutivo e CORAJOSO trabalho, incluindo a Central3 , vocês nos enchem da CORAGEM.
Abraço forte
Ótimo texto!
Ditadura nunca mais.
Texto maravilhoso. Não à Ditadura.