O esporte brasileiro tem que acabar
“Meu nome é Roberto Nascimento, sou tenente-coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro e dediquei 21 anos da minha vida para a polícia, de modo que não é fácil o que vou dizer aqui agora mas a verdade é que a PM do Rio tem que acabar”.
Sonhei muitas vezes em poder repetir a cena em Wagner Moura dá vida ao maior ferrabrás da história do cinema nacional, o Capitão Nascimento, em seu pronunciamento na Assembleia Legislativa do Rio, na histórica cena de Tropa de Elite 2. Palavra por palavra. Com uma pequena mudança. No meu sonho, eu dizia:
“Meu nome é Lúcio de Castro, sou repórter, dediquei anos da minha vida ao jornalismo e muitos deles cobrindo esporte, de modo que não é fácil o que eu vou dizer aqui agora, mas a verdade é que o esporte brasileiro tem que acabar”.
Parece um pouco a ideia de jogar criança e água juntas para fora da bacia. Não é o caso. Assim é a polícia do Rio e pode-se ampliar o campo de observação por outros estados se quiser. Não há remendo possível para botar de pé um corpo putrefato. Não há emenda possível, conciliação ou a velha promessa do “vamos apurar e punir” de praxe a cada genocídio nosso de cada dia, a cada suspeito de sempre que morre, quase todos sempre pobres, negros, negros, pobres, como no verso do bardo. Como desde sempre, a essência preservada desde a criação da Guarda Real de Polícia (1809). A essência de servir ao Império sem qualquer instrumento de controle, reprimir os escravos, controlar o embrião de homens livres que começava a surgir.
Ou seja, criada para ser inimiga do povo, para reprimir tudo o que não fosse corte. E assim desembocaram no que vemos hoje. Independentemente de obviamente termos gente de bem na polícia. É que ela foi feita para isso. A polícia do Rio tem que acabar. Para começar outra coisa, ser refundada com outros alicerces. O que está hoje, como disse o sempre aqui citado historiador maior Luiz Antônio Simas, é um projeto que deu certo. Porque foi feito pra reprimir pobre e preto. E que cumpre exemplarmente tal papel.
Assim é o esporte brasileiro. Com sua estrutura de financiamento, tal qual a polícia do Império, criada, de maneira geral, contra a população, criada para benefício de uma corte, uma casta. Benefício e locupletamento. Nos bilhões que jorram do Ministério do Esporte e das estatais com frouxos mecanismos de controleAssim é o esporte brasileiro. Com sua estrutura de financiamento, tal qual a polícia do Império, criada, de maneira geral, contra a população, criada para benefício de uma corte, uma casta. Benefício e locupletamento. Nos bilhões que jorram do Ministério do Esporte e das estatais com frouxos mecanismos de controle, não muito bem definidos nas partilhas de competência da Constituição de 1988, nas brechas que permitem o passeio de, salvo eventuais exceções, malfeitores que posam como benfeitores da sociedade levando saúde e exemplos de formação para os cidadãos, com o beneplácito de uma imprensa que, em sua maior parte, prefere acobertar as mazelas de olho em bons negócios advindos do direito de imagem, conquistados em conluio com alguns desses meliantes de colarinho branco. E ainda se arvoram a pregar que isso é fator de desenvolvimento da sociedade, que tal incentivo ao esporte resulta em boas práticas.
Em um óbvio esquema de corrupção que se retroalimenta e se esvai em vasos intercomunicantes de algumas dessas confederações e órgãos estatais. No mais perfeito “Princípio do Sargento Rocha”, aquele da já citada fita que apregoava o “quer rir tem que fazer rir”, a peça mais didática, verdadeiro power point que como jamais nenhum outro antes explicou com tanta nitidez o mecanismo de funcionamento disso tudo. Assim, o ministério, as estatais e as leis de incentivo liberam, as confederações recebem, as “agências de marketing”, consultorias, projetos e convênios levam para o Triângulo das Bermudas e lá é feito o butim. Fraternamente, com uma parte voltando para quem fez rir, outra para o topo da pirâmide das eventuais confederações corruptas, outra molhando a mão das “agências de marketing”, convênios e consultorias que elaboram os projetos e promovem o milagre da nota fiscal.
Minha alusão ao Sargento Rocha ao tratar do tema esporte e verbas não é original. Usei a mesma analogia ao falar no Congresso Nacional, em 21 de julho de 2015, para tratar da série de reportagens “Dossiê Vôlei” em debate com representantes do Ministério do Esporte, Banco do Brasil e Confederação Brasileira de Vôlei (CBV).
Trecho: “Pergunto aos senhores deputados, ao representante da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), ao representante do patrocinador, o Banco do Brasil (BB), ao Ministério do Esporte: Em que momento erramos tanto, e o plural tem razão, já que aqui incluo imprensa. Que por ação ou omissão em não cumprir seu papel de fiscalizadora do poder também é cúmplice. E se falo por ação e não só por omissão, falo naqueles eventuais (ainda que em menor número) profissionais e também em jornais sempre simpáticos e chapa branca, simpatia à soldo, de quem não tem bem claro que jornalismo não é sorveteria ou balcão de negócios. Em que momento erramos tanto? Em que momento o Ministério do Esporte assinou convênios com mecanismos tão frágeis e débeis de controle, incapazes de verificar a correção das mais elementares licitações? Incapaz de verificar os vícios de origem que permitem a constrangedora repetição dos mesmos vencedores nos mais diversos itens sempre, há décadas? Que não verificou quem eram as empresas prestadoras de serviço beneficiadas com o dinheiro dos convênios? Ou em que momento não foi capaz do mais elementar cruzamentos de dados para ver que os mesmos ‘amigos do rei’ são os mesmos beneficiários de sempre ? Ou era capaz e assinou?
Em que momento o Banco do Brasil não foi capaz de ver que um elefante se escondia num fusquinha, quando contratos entre ele a CBV eram “intermediados” a posteriori?! Não foi capaz de identificar que comissões milionárias seriam retiradas do dinheiro de uma instituição estatal, à revelia? Ou não eram à revelia? Quero crer que não. Mas essa ausência de controle e a negligência das instituições do estado terminou por gerar a suspeita de que estamos em um país de Sargentos Rochas, aquele da afirmação ‘quer rir tem que fazer rir”. (Brasília, 21/5/2015)
Relembrado esse questionamento no Congresso Nacional a alguns dos envolvidos, seguimos por aqui. Estamos falando de mais de R$ 3,5 bilhões do estado, divididos entre Ministério do Esporte, estatais patrocinadoras e leis de incentivo (por onde andam vocês, panelas? Aqui o escândalo é muito maior do que na lei irmã, Rouanet) consumidos no último ciclo olímpico para resultados pífios, muito abaixo de Reino Unido ou Alemanha, estes com resultados esportivos muito maiores e investimentos muito menores. Provavelmente porque em seus territórios não tem encravados um Triângulo das Bermudas como nós, que temos dentro dos limites do nosso mapa esse verdadeiro triângulo, onde, tal qual aquele das Bermudas, as coisas somem.
Isso sem falar em Cuba para que não gritem na caixa de comentários um “Vai pra Cuba”, o que, aliás, no esporte, os números mostram, seria muito bem vindo. No último Pan, no Canadá, brigamos com Cuba no quadro de medalhas até o último dia. Nas Olimpíadas a briga também foi acirrada, mesmo depois da enxurrada de dinheiro. Sim, Cuba, uma ilha minúscula, asfixiada financeiramente, que gasta menos de US$ 4 milhões no ciclo olímpico inteiro. Pois muito bem: isso não dá a verba que os gloriosos esportes de neve brasileiros gastam no mesmo ciclo. Sim, podem rir. Resumo da ópera: o esporte brasileiro tem que acabar. Ao menos desta maneira como conhecemos hoje.
As vísceras expostas de cada confederação que merece alguns dias de olhar mais atento, de cada cartola, de cada caixa-preta aberta com suas ridículas (e ofensivas à inteligência alheia) agências de marketing, consultorias e convênios por onde jorram milhões de dinheiros públicos, demonstram que com esses aí não tem jeito.As vísceras expostas de cada confederação que merece alguns dias de olhar mais atento, de cada cartola, de cada caixa-preta aberta com suas ridículas (e ofensivas à inteligência alheia) agências de marketing, consultorias e convênios por onde jorram milhões de dinheiros públicos, demonstram que com a maior parte desses aí não tem jeito. Ou implodimos tudo e começamos de novo ou seremos cúmplices de um esquema monstruoso de corrupção, salvo aqui as eventuais exceções que provavelmente existem.
Seguimos ouvindo pateticamente o discurso pelos “homens bons” para restituir a glória e os bons modos. Ou da eventual ascensão de atletas a cargos dirigentes para mudar a ordem das coisas. Como se a maioria dos que estão hoje aí não tivessem sido atletas. O discurso de que a revolução que mudaria tudo seria pela entrada do nome A ou B. Muitas vezes cooptados pela máquina para dar legitimidade a tudo que tá debaixo do tapete. Fazendo, nesses casos, o papel de tristes bobos da corte, que na inocência dos anos passados no suor dos treinamentos não puderam desenvolver plenamente o discernimento para ver o papel que estão reservando a eles. Ou ainda como aquele que acaba a carreira esportiva e se vê sem qualquer perspectiva e se agarra ao braço que se estende, ainda que esse o faça na pior das intenções. E também aquele que também só quer pegar um pedacinho do “Princípio do Sargento Rocha”.
Curiosamente, vimos muitos desses atletas recentemente tocando suas panelas virtuais com força no âmbito nacional mas preferindo se omitir no seu universo (ou quando um dos mecenas, criador de patos, é pego em coisas escusas mas as panelas não batem). Mas ainda assim, há que se amenizar, (mas não isentar) o papel deles. Uma série de circunstâncias levaram os mesmos até esse ponto de serem heróis e mitos dentro de quadras, piscinas e campos e tão frágeis no resto da estrutura. Apontar o dedo para eles e não para o sistema, o andar de cima, é o mesmo pecado do provérbio chinês que fala do idiota que olha o dedo apontado para a lua e só vê o dedo.
A eles, só vale o pedido de que não falem mais ou se empolguem com o discurso do homem bom, ou dos homens virtuosos nos quais confiamos e que se entrarem resolverão. Quantas e quantas entidades temos visto que, ao serem colhidas em flagrante, após o furacão, promoveram a velha máxima do mineiro Antônio Carlos, “fazer a revolução antes que o povo a faça”, mudando nomes, encenando a revolução e com tudo seguindo na mesma, apenas trocando as agências e os cafetões? A eles, vale só lembrar e evocar Thomas Jefferson: “Quando se trata de poder, portanto, não vamos mais falar sobre a confiança nos homens, e sim impedir que eles se comportem mal pelas correntes da Constituição”. Para que não se repita um ritual com o qual já me acostumei: após cada reportagem, após cada escândalo relatado, a romaria em conversas privadas em que lamentam pelos ombros, joelhos e cotovelos despedaçados enquanto a pátria-mãe do esporte sem perceber que era subtraída. Daqueles que passaram a vida no suor dos treinamentos e no penar de muito mais sacrifícios do que glamour nessa rotina de sofrimentos e um dia descobriram que alguém usando o nome deles ria em uma sala refrigerada com o fruto desse suor.
Por isso tudo, o esporte brasileiro tem que acabar. Se quiser recomeçar de novo e ser alguma coisa um dia.
Lúcio, é muito bom ler os seus textos e as suas matérias. Elas são fundamentais pro esporte, pro jornalismo epra sociedade. Se cada um tem a sua função social, como acredito, essa é a sua: tornar público o que poderosos querem esconder. O nosso país sempre esteve nas mãos de poucos e a luta por uma real democracia passa pelo jornalismo sério e compromissado. Quase fiz Comunicação Social, mas mesmo dentro da Sociologia tenho-te como uma referência de profissionalismo e caráter. Continue assim e obrigado por tudo. Abraço!
Grande Lucio de Castro, excelente seu blog! Lendo essas denúncias envolvendo a CBJ fico estarrecido, e desanimado com o esporte brasileiro. Eu como esportista e professor de educação física sinto até uma tremenda vergonha na verdade. Acompanhei o dossiê volei e houve alguma punição? Ou ficou por aquilo mesmo? Sinto que no judô, pelas réplicas do Sr. Maurício Santos que ficará por isso mesmo, tamanha a confiança na impunidade nesse país. Para eles é normal cobrar “a volta” dos contratos com empresas parceiras, parece que faz parte do jogo. É de indignar!
Lúcio parabéns, agora temos mais um para contar as verdades do esporte nacional. Sobre o blog, por favor mude o contraste de cor dos textos, muito claro e difícil de ler. Obrigado
Grande Lúcio de Castro,
É muito bom saber que, em meio a essa mídia omissa e conivente que temos no país, ainda existem jornalistas sérios e corajosos, dispostos literalmente a expor o que há de mais podre no esporte brasileiro.
Seu trabalho é um verdadeiro oásis no deserto de informações sérias que virou a imprensa tupiniquim.
Parabéns e longa vida à sportlight.
Grande abraço.
Matou dois coelhos com uma cajadada. A polícia militar e o esporte nacional são antros de corrupção e imoralidades tão grandes quanto no Congresso, mas se beneficiam de uma certa sombra onde os holofotes não chegam e nem querem chegar.
Tem muita coisa que precisa acabar neste país.
Brilhante texto, sinto falta deles no site da ESPN. Azar da ESPN.
Pelo menos aqui não tem coxinha, verde amarelo e batedor de panelas. Pois eles não pactuam com o Brasil, eles são joguetes nas mãos da elite miserável brasileira, e ainda se acham elite. Porcos miseráveis, recebem migalhas em troca da miséria alheia, e ainda terão que trabalhar até os 65, ou a ficha ainda não caiu?
Nós não temos mais o que fazer pois o Clube do Rio é muito forte e a impunidade é o lema dos velhinhos da Tijuca.
Grande Lucio,você já vem há anos nos elucidando sobre a face oculta do esporte nacional,e nös,ouvintes,e agora leitores só temos que lhe parabeniza-lo pela riqueza de informacoes.
Grande Lucio,você já vem há anos nos elucidando sobre a face oculta do esporte nacional,e nös,ouvintes,e agora leitores só temos que parabeniza-lo pela riqueza de informacoes.
Maravilhoso. Simplesmente perfeito.
Show.