O rubro-negro deve rezar para que o San Lorenzo não tenha visto…
Um Fla x Flu como o de domingo obriga qualquer um a cometer duas ou três linhas sobre o tema. Com tanto assunto e reportagem sobrando sobre 171, golpe, corrupção olímpica, doleiros, Cabral, tava com saudade de falar um pouco de campo e bola…
A essa altura, todo mundo já destrinchou o que se viu em campo. Podemos pular. Mas vale usar o que aconteceu para entender o que é o futebol brasileiro dos dias de hoje.
Havia um tempo que não tinha transmissão da NBA na TV. Para nós, basquete era aquele jogo espetacular, emocionante, que fulminou o coração de Gilberto Cardoso e o transformou em estátua na Gávea. O camarada ia ao Maracanãzinho ver Paulão (irmão do Marquinhos) dar porrada em todo mundo e vibrava. Achava que Pai Nego era uma espécie de Magic Johnson. E era. Nos nossos domínios era mesmo. Tinha certeza de que Almir era algo tão espetacular como um Michael Jordan. Jogava muito mesmo o filho da Cruzada São Sebastião. Flamengo, Vasco, Fluminense, protagonizavam duelos espetaculares. Cada um tinha um gringo, um americano de terceira linha lá que aqui fazia miséria. Tinha o Lelo, impossível esquecer o Lelo. Se Rondinelli era o “Deus da Raça” nos gramados, ninguém podia superar o Lelo em amor a uma camisa. É obrigação do torcedor rubro-negro de hoje procurar saber quem foi o Lelo. Poucos amaram uma camisa como ele.
Em São Paulo, o Sírio fazia jogos míticos. Achávamos que aquilo era basquete. Sabíamos que os profissionais americanos eram outra coisa, mas como não víamos, era só do campo mítico mesmo, quase uma abstração. No máximo, víamos os Globetrotters por aqui e imaginávamos o que seriam os profissionais. Nas Olimpíadas, até 92 eles iam com universitários e já era o suficiente pra só terem a então União Soviética como adversários repetidos nas finais…
Até que um dia, fiat lux. Começaram a passar os jogos da NBA por aqui. Boa parte dos leitores aqui não tem a menor noção do que se está falando. Já nasceram vendo o basquete de verdade. E ao contrário de nós, os mais passadinhos, sempre souberam que o que se joga aqui é outro jogo. Outra modalidade. Emocionante, espetacular, mas… outro jogo.
Pois tragicamente vivi para chegar ao tempo em que o futebol brasileiro, de tantas glórias, o melhor e de mais arte do mundo, virou isso: algo emocionante, espetacular, de matar do coração o torcedor mas… outro jogo!
É de cortar o coração brasileirinho, com muito orgulho, com muito amor, mas é a mais pura verdade. E num tempo em que, ao contrário de como era no basquete, temos acesso ao futebol que tá se jogando lá fora, ver um jogo do campeonato inglês, da Liga dos Campeões ou o que o valha, é a simples constatação: temos hoje outro jogo praticado por aqui. Emocionante porque temos o amor pelas camisas, espetacular por isso mas… outro jogo.
Poucas coisas representaram tanto isso quanto esse Fla x Flu. Emocionante demais, de ferrar cardíacos e não cardíacos. Acaba o jogo e a reação é sempre: “que jogão”. Mas quando a poeira baixa, se quisermos um pouquinho de sensatez na análise, e se não formos analistas do tipo que tem que vender o produto, é fundamental se dizer que é outro jogo. Aquelas sequências de chutões, a bola que sai da defesa sem passar pelo volante pensado como um homem de criação, o chutão do zagueiro pra chegar ao ataque, aqueles times espalhados no campo… nada tem a ver com o que estamos vendo por aí, do que é futebol, numa distância que aumenta a cada dia e alarga o fosso entre os continentes.
Não impede mesmo que seja profundamente emocionante. Aí entram outras coisas, sempre citadas por aqui. Os traços de sua identidade expressos nas cores da camisa amada, a lembrança da rampa subida ao lado do pai que ama aquele time específico… mas ninguém precisa ficar ofendido, emoção nada tem a ver com qualidade. Vamos continuar para todo o sempre nos emocionando com nossas cores. Mas bem que podia voltar a ser um jogo igual ao que se faz por aí…
A prova de que emoção é uma coisa e qualidade outra é o Campeonato Nacional de Basquete dos Oompa-LumpasA prova de que emoção é uma coisa e qualidade outra é o Campeonato Nacional de Basquete dos Oompa-Lumpas (aqueles minúsculos trabalhadores da fábrica do Willy Wonka, que vieram de Loompalândia). Pelo imenso equilíbrio que certamente existe. Naquele mar de anões, costuma ganhar o time que tem um técnico que enxerga um pouco mais o jogo de basquete. Nada que justifique o comentarista de Loompalândia dizer que o campeonato de basquete dos Oompa-Lumpas é muito melhor do que a NBA, por ser tão emocionante e pelos vários times que começam o ano em condições de chegar ao título.
Nossa tragédia é desse tamanho: o melhor futebol do mundo, quem diria, virou o campeonato dos Oompa-Lumpas! Emocionante, mas nivelado por baixo. E muito diferente do que é praticado por aí.
Sobre o Fla x Flu vale o olhar mais detido sobre o que acontece com o Flamengo, e que tanto espelha o momento que passamos. Um técnico novo, cheio de ideias bem construídas de futebol, mostradas quando fala e discorre sobre o tema. Nenhuma dúvida de que está atualizado, que sabe o que tá acontecendo por aí. Mas o problema é o que escrevi há pouco, aqui mesmo nessa Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo, no texto “Sarmiento explica a defasagem dos nossos treinadores e o sucesso dos hermanos”. Está lá:
“Muitos desses jovens treinadores entenderam que a vida no futebol atual passa por aquilo tudo que tanto se fala, da compactação dos times, das funções em campo, de como subjugar o adversário. Mas muitas vezes não sabe como fazer. Como o intercâmbio é pouco, vamos bater um pouco de cabeça. Quando se compra um sofisticado produto importado, a grande diferença pela qual o comprador se bate é pela transferência de tecnologia. Estamos nesse ponto: entendemos já que é preciso fazer o que está sendo feito por aí, respeitando sempre nossas características. Mas agora a questão é saber como se faz. Como todo buraco, vai levar algum tempo. Mas ao menos saímos da inércia”.
Pois é. Zé Ricardo é a expressão disso. Vê o City duas vezes por semana, vê o Real, o Barça, o Chelsea. Sabe exatamente o que está acontecendo, o que quer, sua ideia de como deve ser o futebol. É um avanço. A geração de treinadores que vai saindo “não via e não gostava”. Ou achava que nada demais acontece. O problema da nova geração não é atualização. É que não sabe fazer. É natural, como é a transferência de tecnologia a qual nos referimos. Quer que o time saia com a bola dominada, quer compactação, quer triangulações, quer profundidade. Só não sabe como vai fazer isso, que treinamento fazer para chegar lá. Zé Ricardo não é exceção. De certa forma, os demais técnicos por aqui padecem do mesmo mal.
Isso não quer dizer que é hora de rasgar o trabalho deles. Principalmente voltar aos velhos medalhões. Ruim com essa garotada que tá chegando, pior sem eles. Ao menos sabem que algo tem que acontecer, sabem o que querem, não sabem fazer. A turma que tá saindo não sabe o que fazer e tampouco como fazer. Portanto, pra mudar, só se for pra ter alguém que tenha esse pulo do gato: saiba como fazer, saiba botar isso em prática nos treinamentos. Saber que Guardiola faz a “ronda” nos treinamentos pra aproximar seus jogadores, pra triangular, pra aprofundar, eu também sei. Botar em prática é que são elas. Eu não sei. E tragicamente, por hora, poucos por aqui sabem. Vale a pena repetir mil vezes isso: ruim com essa garotada que tá chegando, muito pior sem ela. Antes que após duas derrotas ressuscitem o Pofexô.
O ruim de tudo é que o dia a dia do futebol não permite tempo para aprender. E nem o alto nível é lugar disso. Na quarta já tem outro jogo. Para os rubro-negros, é rezar para que a turma do San Lorenzo não tenha visto o Fla x Flu. Nada foi tão didático para expor os defeitos óbvios do time como o jogo. O não saber como fazer para sair com o jogo construído lá de trás, a incompetência para ser agudo, aquele buraco no meio de campo, a falta de treinamento que ensine como triangular bem próximos e furar a defesa, cuja incapacidade leva para a tragédia do maior traço de um time: o samba de uma nota só das centenas de cruzamentos o tempo inteiro. Cruzamento para ser benevolente e não ressuscitar o velho termo: “chuveirinho”. Se viram, entenderam que, apesar do bom elenco, o leão é mais manso e domável do que parece. Olhando assim, depois de um “jogão”, o título lá de cima parece exagerado. Até é um pouco. Mas é que o Fla x Flu expôs muito dramaticamente as fraquezas que já vem sendo demonstradas há muito tempo…
O pior é que nem dá pra rezar: o papa é deles. O rubro-negro bem estereotipado, otimista incorrigível, aquele em essência, o “rubro-negro rumo a Tóquio” permanente como estado de espírito e forma de encarar a vida, já tem na ponta da língua a solução: “o papa é deles mas Deus é rubro-negro”.
Com os limites apresentados no Fla x Flu, só o lá de cima salva na Libertadores. Ou o bafo da nação no cangote alheio.
Lúcio, concordo em tudo com sua análise dos treinadores brasileiros. Permita me discordar apenas da sua análise sobre o Zé Ricardo e mudar um pouco do foco. Zé Ricardo é atualizado como vc disse e aplica os métodos de treinamento atuais, porém a execução é feita pelos jogadorese e nisso que entra a questão: que o poder de concentração dos jogadores aqui é menor do que os jogadores que jogam na Europa. Ou seja, mesmo bem treinados se dispersam rápido do objetivo traçado. A maior parcela de culpa está nos próprios treinadores medalhões que por anos a fio “destreinaram” os jogadores daqui. Isso leva a tempo pra incorporar e faz parte do processo de adaptação dos jogadores aos novos conceitos. Sendo que como vc bem falou, ainda há medalhões que ainda estão treinando equipes.
Quem melhor souber montar essa união de métodos de treinamento moderno com jogadores concentrados vai dominar o futebol brasileiro. Vide o que Tite fez.
Um abraço e parabéns pelo excelente trabalho aqui.
Na mosca Daniel! É exatamente isso. Gestores de ‘rh’ antes de TODO o “resto”. Tive é o exemplo lapidar disso: um grande “psicólogo”.
Vlw
Acho que é um pouco falta de conhecimento com falta de interesse e concentração. Muito do que é praticado lá é executado por muitos treineros aqui. Dificil é tempo de trabalho e capacidade se assimilação.
Não assisti à partida, pois estava acompanhando ao jogo do meu time, o Bahia. No entanto, como de praxe, fui ver os melhores momentos dos principais jogos do fim de semana na manhã de segunda. Fiquei absurdamente constrangido com o pachequismo e o exagero do narrador Luís Roberto.
Claro que cabe ao narrador passar emoção e vender seu peixe, mas o que se via e ouvia beirava ao ridículo. Afinal, se algo é realmente bom, qual a necessidade de ratificar a cada chutão do zagueiro ‘que jogão é esse’? No mínimo, subestima a inteligência esse tipo de condicionamento. Complicado. Por que não tratar o futebol brasileiro pelo que ele realmente é? Emocionante, vibrante e afetivo, mas longe de representar de fato o que é o fino da bola na atualidade. Lembro que muitos pachequistas criticavam o futebol inglês, por exemplo, pelo estilo de jogar bola anacrônico, no qual a única alternativa era o chuverinho. E o que é o futebol brasileiro hoje, senão um festival de cruzamentos em que, até o campeão nacional, se destacou por ter como grande jogada o arremesso lateral cobrado na grande área? Complicado…
Lúcio, escreva mais sobre futebol. Reconheço demais a importância das suas matérias que são verdadeiros cases de como apurar um fato, mas suas crônicas e opiniões futebolísticas também são demasiadamente prazerosas. Um abraço e vida longa a seu trabalho.
Ótimo artigo Lúcio, para variar. Comparação precisa com a descoberta da NBA, essa excelência no esporte que nada tem a ver com o basquete tupiniquim. Também lamento o abismo que se está formando entre o futebol nacional e o praticado nos maiores centros europeus. Antigamente eu assistia muitos jogos de futebol nacional que não envolvessem meu time (o Santos). Hoje são poucos e, não raro, a mediocridade faz com que eu cochile antes do intervalo. Quanto ao meu time do coração, é pra toda vida, fazer o quê, mas tento ir ao estádio o máximo que posso, porque pela TV, confesso, às vezes também me dá um sono …
Oi Lucio,
Eu sou um desses “passadinhos”, seu leitor e torcedor do Flamengo aqui em Itatiba-SP, mas carioca de nascimento e coração. Hoje, dias depois do atropelamento que o Fla impôs ao S. Lorenço, podemos confirmar que Deus é brasileiro. As vezes fico imaginando que seríamos o Leiscester se jogássemos a liga inglesa. Meu filho de 12 anos acha que não seríamos tanto. Abs e SRN