“Isso que chamam de flexibilização laboral é um eufemismo para o nome que a escravidão merece”. Eduardo Galeano
Fui pra frente da TV e fiquei esperando. Como a sabedoria popular manda esperar sentado, obedeci. Na quarta-feira, 15 de março, aguardava a entrada do Escobar na minha tela falando sobre as manifestações contra as reformas trabalhistas e contra o golpe a cada intervalo, interrompendo a programação em nome do interesse jornalístico, dividindo tela até com o sagrado futebol. Não conseguia entender a ausência da reluzente careca na tarde daquela semana que passou. “Deve estar doente o Escobar pra não entrar sem parar e ficar horas a fio chamando o Brasil inteiro no vídeo”, pensei comigo. Numa curiosa matemática dos fatos, a meia dúzia de gatos pingados de ontem teve espaço muito mais generoso do que os milhares do dia 15. E a seguinte manchete no Globo: “Lava-Jato recebe apoio em 19 estados”. É uma vergonha alheia que não quer passar…
Não me importei muito. Em geral só vamos entender essas ausências 25 anos depois, quando o diretor pede desculpas “pelo erro de avaliação na cobertura jornalística”. Se só agora tivemos uma palavra sobre a ausência do Escobar da época na cobertura das diretas, é de se achar razoável que em uns 25 anos saberemos a razão de milhares de pessoas nas ruas do país inteiro manifestando-se contra a terceirização no trabalho não merecer cobertura sequer mínima por parte dos meios de comunicação.
Me lembrei da já citada Luana Piovani nesta Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo, no texto “Posso te contar umas coisas que vi nas redações?”, onde lembro a frase dela para justificar a posição política dela, evocando a cobertura dos jornais para se posicionar. “Os fatos estão aí. Me dá a impressão de que todos estão hipnotizados”. Se a loura não deu uma voltinha fora da zona sul naquela tarde, se não buscou informação além dos meios tradicionais, desconheceu que o povo foi para rua protestar contra o próprio assassinato que sofreria poucos dias depois no congresso nacional. Porque aconteceu algo que, mesmo em meio a tantos escândalos por parte desses meios de comunicação recentemente, mesmo assim ainda dá pra se chocar. Pelo noticiário da TV, as multidões nas ruas mereceram perto de atenção zero. O que obviamente facilitou a tarefa dos vendilhões do parlamento na apressada votação. Se não deu na TV, se a dor da gente não saiu no jornal, não é tanta dor assim, né? E se foi pé de página se tanto no Jornal Nacional, mais uma vez em nossa história, “às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”, como naquela reunião já longínqua de 1968.
Cansado de esperar, levantei e fui para o Centro, afinal, quem sabe faz a hora, não…Mas aquela inquietação que me acompanhou na meia hora da viagem do metro ainda não quer passar. Como pode, de novo, tudo estar acontecendo assim, se repetindo tanto como farsa? Até mesmo o velho forfait na cobertura, agora ainda mais seletiva! Qual serviçal pedirá desculpas daqui a 25 anos? Com tudo isso em mente, diante do rolo compressor que segue passando, embalado nas panelas cúmplices da margem da lei e do escárnio seletivo, o que parece nos restar é mesmo tomar seu lugar no metro da história ou no testemunho do seu tempo, seja em mal traçadas como essas daqui, seja nas redes sociais, onde for.
Além da luta sempre e todas as suas formas, resta a biografia de qualquer um. Há quem considere menos importante ou se dar muita relevância pensar na biografia. Não penso assim. Cada um que tenha a sua, cada um que luta pela sua. Quando se fala em lutar pela sua biografia, pela sua história, não está se falando em se dar importância. Está se falando em como se quer que um filho ou um seu saiba de você, como quer contar sua história daqui aos tais 25 anos. Para os seus, para você. Só isso.
E mais uma vez em nossa sofrida história é esse nosso momento. De saber quem estava mandando os escrúpulos às favas, quem estava fantasiado de morobloco batendo palma pra escalada do autoritarismo, quem estava de animador de domingo na sua tela dizendo vem pra rua…Mais cedo do que tarde, a história bate a sua porta. Inexoravelmente. E vem cobrar onde estava você naquela hora da foto. Não é tão grande assim, ninguém é tão importante assim para se achar protagonista a ponto de ter relevância na história. Não é só isso, mas é só pra querer saber qual foto estará na lembrança dos seus em 25 anos. Em minha sala, está lá, aquela foto de 68, o orgulho de saber que os meus estavam ali, de que lado andaram. Mais do que isso, já que a foto ensina não bastar estar em um lado da história e depois desbundar: de que lado estavam e onde permaneceram. Mesmo contra tudo e todos. Mesmo que o caminho seja muitas vezes mais difícil. A única coisa que vale é olhar para trás e saber onde você estava.
E que foto…Já fomos mais mesmo como categoria, já tivemos mais pudor, já tivemos mais escrúpulos, já tivemos mais vergonha. Eram tempos mais duros, a escolha do lado e da foto era risco de vida. Agora ser animador de vem pra rua na TV parece coisa normal, indolor. Daqui a 25 anos não será. Quando a história desse golpe for contada, os arquivos abertos, quando o óbvio deixar de ser apenas o óbvio e for documento, quando os livros mostrarem como se construiu uma fraude, quando tudo isso estiver enfileirado em documentários, livros e testemunhos, cada um que possa se olhar no espelho e carregar seu fardo.
Olhar para trás como Leonardo Veliz. Pra todo o sempre vou lembrar daquela tarde em Santiago. “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor” era ainda apenas uma gestação e estava ali diante do craque chileno que, junto com Cazsely, ousou encarar Pinochet. Como todos que ousaram, pagou seu preço. Passamos uma tarde e adentramos a noite em conversas e gravações. Do lado de cá, onde a câmera não mostra, chorão juramentado, me emocionava com aquele depoimento lancinante, as memórias de quem preferiu pegar o metro e pagar seus preços. Para então poder, tantos anos depois, ao fim de horas de depoimento, de retratar tanto sofrimento daqueles dias, olhar pro céu, suspirar e dizer: “Valeu a pena”.
A vida anda mas aquele “valeu a pena” sempre volta com força em minha cabeça. Quem viu ou vier a ver o capítulo Chile do “Memórias” creio que irá concordar. Poucas vezes vi tão pouco dizer tanto. Na expressão, no olhar, no suspiro daquele “valeu a pena”, de Veliz, toda uma história, toda uma biografia, uma foto inteira de alguém, do lugar onde você estava. Para quem não viu, resumo: Veliz relata tudo o que passou, todo o sofrimento daqueles dias de Pinochet, por ter sido da resistência. Como disse, é lancinante. E ao final, mesmo assim, suspira, olha para câmera e fala: “Valeu a pena”.
É só por esse “valeu a pena” daqui a 25 anos que vai valer a pena de novo, que tá valendo a pena passar por dias tão tenebrosos e repugnantes, que, do alto de minha mais profunda sinceridade, não esperei que minha geração iria passar. Nem nos piores pesadelos poderia achar que veria um golpe, que minha geração iria ver direitos básicos sendo suprimidos, que até a liberdade de expressão estivesse de novo em jogo, que um juiz iria rasgar a constituição e iria passar por cima da quinta emenda, que até o sigilo da fonte iria virar pó…Amanhã há de ser outro dia, já dizia o poeta e também a história mostrou…
Essa mesma história vai mostrar como o rolo compressor passa, arrastando gente, mentes e palavras. Nem elas, as palavras, ficam imunes nesses momentos. Pelo contrário, na maioria das vezes, são as palavras e seus significados, é a fala, mutante por diversas razões como aprendi nas aulas de linguística e nos livros de Saussure. Se lá atrás golpe virou revolução, hoje golpe vira impeachment.
Ninguém, e nem poderia mesmo, contou melhor como isso funciona do que ele, Eduardo Galeano, que tanta falta faz num momento desses. Com imenso orgulho, e confessas despudoradas trombetas da vaidade soando, conto que tive o prazer e honra de desfrutar da imensa sabedoria e alguma convivência com aquele que tão primorosamente retratou nosso continente. Em bons bate-papos ao vivo, seja nas vindas dele por aqui, ou naquela mesinha mais ao fundo do Café Brasil de Montevidéu, onde ele adorava passar suas tardes e receber. Entrava-se lá e o garçom já apontava para o lugar cativo onde a resenha fluía fácil e futebol era o assunto preferido. Por algum abuso dessa convivência e novamente falta de pudor, abusei algumas disso e dei o passo a mais na relação em entrevistas, reportagens e programas. Nunca reclamou, embora o prazer mesmo fosse falar de futebol, craques de ontem e hoje, sempre atualizado, num caso típico daqueles onde a nostalgia não atropela o prazer de ver o que está se passando.
Foi num desses abusos que pedi duas ou três palavras sobre terceirização e afins para um documentário então em curso que tratava das transformações do mundo do trabalho, com olhar mais atento sobre imigração mas também sobre as mutações de maneira geral. Como em tudo, em duas ou três linhas Galeano conseguia ser repórter e cronista de seu tempo e dramaticamente poeta. E foi em duas ou três linhas que explicou o que era a tal terceirização que tanto falam e vendem por aí como a última maravilha da modernidade.
Em meio as manchetes de jornal falando na modernização do trabalho, prometendo o paraíso através de uma tal “flexibilização” do trabalho, fui aos meus arquivos. Ver o que tinha gravado com ele. Parece que ele está aqui entre nós. E afinal, claro que está. Vendo tudo o que está acontecendo. Vendo os proxenetas de sempre tratarem escravidão com nomes bonitos. O que ele diz sobre as terceirizações e sobre o que estão fazendo é assustadora premonição e perfeito desenho do que estamos vendo.
Escravidão não é chamada escravidão não, porque o dicionário do nosso tempo mente o significado das palavras, mas tem uma quantidade imensa que vive em condições de escravidão, e isso não é denunciado porque a escravidão virou normal na medida que deixou de ser chamada de escravidão, mas é escravidão mesmoFala, Mestre: “Isso que chamam de flexibilização laboral é um eufemismo para o nome que a escravidão merece. Escravidão não é chamada escravidão não, porque o dicionário do nosso tempo mente o significado das palavras, mas tem uma quantidade imensa que vive em condições de escravidão, e isso não é denunciado porque a escravidão virou normal na medida que deixou de ser chamada de escravidão, mas é escravidão mesmo.”
Não satisfeito em ser tão agudo sobre o processo aqui em curso há anos atrás, traçou o contexto em que isso se dá. E o cinismo com que vai passando por cima da lei, comprando congressos e manchetes de jornal: “A globalização implica um uso das pessoas como se fossem coisas, objetos, usa e joga fora, tantas pessoas, nos países do sul do mundo em geral, que são usadas, jogadas no lixo, hoje não tem estatística capaz de medir isso, porque tem as duas realidades: uma realidade real, que é essa, e outra, que é a realidade da mentira cotidiana, que é a máscara da outra, e que é a realidade formal, das declarações, das leis, das constituições, acordos internacionais, o mundo do poder, que é um mundo que mente quando fala, e quando cala, também. “
Depois de Galeano, é sempre hora de concluir. Seria inútil querer acrescentar algo. Deixo apenas o convite para quem quiser ver e ouvir tais palavras. Por essas coisas da modernidade e sempre por alguma alma boa, já que este modesto escriba e tecnologia são incompatíveis, alguém que sabe fazer isso botou lá no you tube. Segue o link: http://reporterbrasil.org.br/2011/12/escravos-do-seculo-xxi-2/
A fala de Galeano é logo no primeiro bloco, com 4m38 e tem uma segunda fala em 6m07. Se alguém quiser editar e botar tais trechos para que se fale mais sobre a nova escravidão que se avizinha, é bem vindo, sempre.
Por fim, deixo aqui também as palavras de Wladimir Safatle, publicadas na Folha de São Paulo (24/3/17). “De fato, há sempre aqueles dispostos à velha identificação com o agressor. Sempre há uma claque a aplaudir as decisões mais absurdas, ainda mais quando falamos de uma parcela da classe média que agora flerta abertamente com o fascismo”.
Safatle vai além, e trata, com imensa felicidade, sobre o que esta modesta trincheirinha tem tanto falado e cometido o pecado da repetição, por esse ser sempre melhor do que o da omissão. Que tudo isso que vem acontecendo só é possível por existir uma imprensa que surrealmente desconhece ou finge desconhecer preceitos básicos de dignidade e ética do ofício. Safatle:
“Ou seja, o mundo destas pessoas é uma peça de ficção sem nenhuma relação com a realidade. Mas nada seria possível se setores da imprensa não tivesse, de vez, abandonado toda ideia elementar de jornalismo. Por exemplo, na semana passada o Brasil foi sacudido por enormes manifestações contra a reforma da previdência. Em qualquer país do mundo, não haveria veículo de mídia, por mais conservador que fosse, a não dar destaque a centenas de milhares de pessoas nas ruas contra o governo. A não ser no Brasil, onde não foram poucos os jornais e televisões que simplesmente agiram como se nada, absolutamente nada, houvesse acontecido. No que eles repetem uma prática de que se serviram nos idos de 1984, quando escondiam as mobilizações populares por Diretas Já!. O que é uma forma muito clara de demonstrar claramente de que lado sempre estiveram. Certamente, não estão do lado do jornalismo”.
Parabéns pelo texto ou pelos textos que vêm escrevendo, resistência é muita coisa neste momento e devemos resistir sempre.
Muito bom ler seus textos, Lúcio!
Eu não sou muito bom com as palavras, mas sei onde encontro conteúdo, embasamento e paixão pelo que faz.
Você é um tipo único de jornalista, daqueles que segundo seus textos “atravessa a carvoaria e sai limpo”.
Parabéns por se manter fiel aos seus princípios e ideais.
Obrigado sempre pelas brilhantes reflexões!
Como sempre, fenomenal.
Qualquer palavra de Galeano merece ser lida, absorvida e reverenciada. Tenho inveja de ti por ter sido amigo desse gênio.
Parabéns Lúcio de Castro,
Está fazendo falta na ESPN.
Muito bom, como sempre!!!!!!!!! Parabéns!!!!!
Excelente Texto, Lúcio!
Saudades de você na ESPN!