O juramento do jornalista
Não compareci a minha formatura na faculdade de jornalismo. Já tinha gasto o aluguel do terno pra colar grau em História anteriormente, e, afinal, o objetivo maior do canudo para não andar na caçapa do camburão em qualquer eventualidade já fora alcançado naquela ocasião.
Os anos se passaram, a História acabou valendo muito pelos grandes dias vividos no velho IFCS, dos bons debates, de grandes amigos que somem no mundo mas seguem com a gente (alguns até aqui nesta Agência Sportlight!) e das possibilidades que me deu em ampliar a bibliografia e a visão de mundo. Mas profissionalmente ficou por aí. Nas breves experiências que tive como professor, acabava me encantando mais pela bagunça da turma do fundo da sala do que com a própria aula. Não ia dar certo… E a festa de formatura antes relegada do jornalismo fez-se presente com força todos os dias que se seguiram.
A chama atávica insiste em bater a cada dia. Só não posso ousar repetir Gabo (“minha primeira e única vocação é o jornalismo”) porque no fundo alimento que minha primeira e única vocação é ser vagabundo. Vocação para a qual me sinto extremamente capacitado e com talento. Mas, apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes, sem herança, filho de um também operário da notícia e de uma mulher lutadora, nunca tive e nunca terei a possibilidade de exercer tal vocação pra vagabundo em plenitude. Portanto, nunca saberei se era mesmo minha maior vocação. Mas quando chegar a grande noite e então me levarem com o manto em cima do caixão, lá de dentro estará alguém desconfiando que tudo valeu a pena mas que poderia ter sido um grande vagabundo. E as coisas teriam sido melhores…
Quanto mais nesse país de aposentadoria impossível, nesse país de uns golpistas salafrários que usaram um cunha para então chegar no que queriam e verdadeiro objetivo final: em uma noite tiraram conquistas de décadas de toda a gente, e que serão bem remunerados pelas Fiesps da vida por isso. A parte que nos cabe neste latifúndio é mesmo suar até o último dia. Enquanto eles dão risadas.
Mas não podendo ser vagabundo, não podia ser mais feliz fazendo a segunda coisa que mais queria, descartada a primeira. Ser repórter. Para o citado Gabo, a mais bela das profissões. Injusto com tantas, mas mesmo pouco exato, que assim seja, uma mentira que faz bem pra alma. Um dia deixarei soarem as trombetas da vaidade e contarei o que ouvi de Gabo sobre a profissão, em um encontro dele com alguns jornalistas. Onde ele pedia só uma coisa previamente: “Quero conversar, trocar ideias sobre a profissão, como um de vocês que sou”. Ali, naquela resenha, não queria ser o Gabo que justamente mistificamos. E sim o que sempre reafirmava: jornalista até o fim.
É nessa certeza do amor por um ofício, do sagrado que nele deve existir, que volto a noite da formatura que não fui. Daquela noite carrego um vazio que agora tento pagar. Agora não, todos os dias. Podem achar cafona, infantiloide, chamem do que quiser. Mas me faz imensa falta, um buraco imenso, não ter subido na tribuna, olhado os meus lá de cima, e, inverterado chorão que sou, já em lágrimas, ter começado a dizer:
“Juro exercer a função de jornalista, assumir o compromisso com a verdade e a informação. Atuar dentro dos princípios universais de justiça e democracia, garantir principalmente o direito do cidadão à informação. Buscar o aprimoramento das relações humanas e sociais, por meio da crítica e análise da sociedade, visar a um futuro mais digno e mais justo para todos os cidadãos brasileiros. Assim eu juro”.
Quase um primo pobre do juramento de Hipócrates, que todo mundo, médico ou não, cita. Verdade que já um pouco passadinho, desatualizado, como Drauzio Varela gosta de zoar seus colegas formandos sobre o juramento dos médicos, atentando para o ridículo que o tempo fez de algumas coisas ali contidas. Assim mesmo, primo pobre, esquecido que é, me deixem com o juramento do jornalismo.
Comparsa de fé, de luta, de mesas, de derrotas memoráveis e acima de tudo, da rua, Luiz Antônio Simas, costuma dizer que é um homem de ritos. Da importância dos ritos em nossas vidas. Até nisso estamos irmanados. Abraço meus ritos em todos os seus encantos, em todo transcender que me trazem.
E por isso, só entendo meu ofício como uma renovação diária da promessa do seu juramento. Da promessa de que esteja sempre a “atuar dentro dos princípios universais de justiça e democracia, garantir principalmente o direito do cidadão à informação”, que deveria ser o mais básico dos preceitos, natural como beber água, mas que nesse Brasil de 2017 virou a mais desafiadora e quase impossível missão do jornalista. Da censura nossa de cada dia das redações, que alguns preferem cinicamente fingir que não é fato…De um jornalismo cada dia mais de cócoras. Para não ser repetitivo, favor ler o que escrevi sobre no texto desta agência sobre Luana Piovani.
Assim eu juro. É cafona, é o que for, mas deveria martelar corações e mentes em nossas oficinas periodisticas todos os dias.
Porque não é possível alguém estar confortável tendo feito esse juramento fazendo o que anda rolando por aí.
Nunca imaginei que no país que sonhei e imaginei com tanto amor, iria ver um rolo compressor de reportagens sobre reformas trabalhistas que sequer tinham mais o pudor de ouvir os dois ladosNinguém pode achar normal que os mais básicos preceitos tenham sido esquecidos. Com escárnio, com desdém. Serviçalmente. Falam muito das ditaduras, da liberdade de expressão. Com toda razão. Esse é um ponto acima de direitas e esquerdas, tem que ser. Mas é digno de muito mais repulsa ainda o serviçal que se presta a achar normal o que estamos vendo. Nunca imaginei que no país que sonhei e imaginei com tanto amor, iria ver um rolo compressor de reportagens sobre reformas trabalhistas que sequer tinham mais o pudor de ouvir os dois lados. Nem ao menos fazer como antes, editando para “ensanduichar” (aprendi o termo no coração do monstro, sobre a técnica que finge dar os dois lados e edita privilegiando um deles). Pois nem assim mais fazem. Perdeu-se o pudor nesse Brasil de 2017.
Como disse esses dias um amigo estupefato com o que via de dentro de uma oficina dessas, num desabafo sofrido: “Acabou. Não tem nem mais essa de ouvir dois lados. É no rodo mesmo”.
Gostar e amar tanto um ofício é sofrer todos os dias ao ver o que estão fazendo dele. Meu Deus, como imaginar que ia ver isso no Brasil de 2017…
Onde foi parar o nosso juramento, aquela parte do “buscar o aprimoramento das relações humanas e sociais, por meio da crítica e análise da sociedade, visar a um futuro mais digno e mais justo para todos os cidadãos brasileiros” quando tiveram a ousadia suprema de propor que uma mulher (GRÁVIDA!) possa trabalhar em condições insalubres e o jornalismo não gritou? A história vai cobrar. Que o almofadinha daquela bancada suja que faz jogral na noite da minha casa todos os dias saiba que um dia seu filho estará em um arquivo e o coleguinha dele vai mostrar onde estava o pai dele quando tudo isso aconteceu. A história não tem pressa. Não seja assim tão despreocupado com os arquivos. Você que foi cúmplice quando tudo isso aconteceu, por que não pensou no nosso juramento?
A culatra desse tiro é grande, caros, cuidado. Não podem achar que um monte de bandido de um congresso corrupto vai votar para que sua filha possa trabalhar grávida em condições insalubres, que seu filho teve a hora de almoço reduzida, que vale o que o patrão determinar sobre a lei, e o sujeito vai achar legítimo que Cunhas façam isso e ele siga esperando a morte. E que o bicho não vai pegar mais do que já está pegando nas ruas. Já fugiu ao controle. A barbárie bate a sua porta.
Não é possível se achar que a aberração das aberrações seja normal. Aqui não discutimos nem a reforma. Mas como achar normal que isso seja implementado por um governo que não foi eleito? Para promover tais reformas, é preciso antes de qualquer coisa, botar isso em debate, submeter ao povo. Se ele disser sim a esse projeto de governo, ok. Mas sem voto não pode. E não questionar isso é inacreditável para uma imprensa que se pretende livre. Antes de saber se é boa ou ruim uma reforma, ela deve ser submetida as urnas. Ponto.
Não é possível que alguém ache normal ter um presidente da república partícipe de uma reunião de 40 milhões de reais de propina e isso estar esquecido no noticiário. Estamos falando do presidente em atividade. Nunca mais sequer se falou disso. Não é possível, não rasguem nosso juramento.
Não é possível que no momento em que o presidente da república esteja sendo acusado de participar de tal reunião, que ele mesmo confirme a presença, a manchete de um dos principais jornais do país seja esse mesmo presidente falando: “Não será a corrupção que poderá parar esse país”. E que na reportagem não exista o menor questionamento. Estamos falando do presidente em exercício, portanto, obrigatoriamente deve ser o caso mais visado de qualquer lista. Dei dez pulos na cadeira ao ver que o protagonista do caso de 40 milhões de propina era a manchete a vociferar contra a corrupção.
Nem queria a digressão, porque se alguém conhece minimamente os passos de quem escreve, sabe que os últimos anos todos dessa modesta carreira foram falando de descalabros das gestões que estavam no poder recentemente. Vôlei, basquete, judô, todas essas reportagens falavam de descalabro com conivência e participação de estatais dos últimos governos. Mas tem uma turma que só desenhando mesmo, então que seja, desenhemos.
Não se está falando aqui que esse bandido é bom e o outro não. Escrevi outro dia que era uma aberração que os jornais só falassem em uma pessoa depois do início das delações e a turma que precisa de desenho saiu com as pedras de sempre. Não discutia só a política. Estou falando da minha profissão. E nela, o scout não pode ser assim desequilibrado, seletivo. Dane-se o Lula ou quem quer que seja. Que se mostrem todas as mazelas dele. Mas as dos outros também. O que estamos vendo é uma aberração. Se o jornalismo só fala de um, é uma aberração e ponto.
Talvez só escrevendo em caixa-alta: temos um presidente em atividade que se reuniu pra discutir o documento do golpe em sua superior hierárquica. Temos um mandatário no poder que estava em reunião pedindo 40 mangos de propina. E isso sumiu do noticiário. Estamos falando aqui de jornalismo, cobertura da imprensa, meus caros, não de ideologias, etc, como gostam de dizer. Atenção. E se ainda assim, você achar que a cobertura é igual, realmente não há nada a acrescentar mais.
Ninguém em sã consciência e em dia com seu juramento pode achar que discutir 10 dias sobre uma ex que “sabia” é mais jornalístico do que um atual que roubou.
Tudo é muito grave.
A vingança virá dos arquivos. Da história.
Alguma vingança já começa. A vida tem me dado o enorme privilégio e honra de participar de congressos, palestras e seminários de jornalismo mundo afora. E posso afirmar sem qualquer risco de erro: tragicamente, nosso jornalismo virou uma irrelevância mundial. Representatividade zero. Não estou falando aqui de técnicas modernas de tecnologia, designers hightechs, transmissões, etc. Somos muito bons nisso. Estou falando de jornalismo. Reportagem. A cada seminário, palestra ou congresso por esse mundo afora, a pergunta é sempre a mesma: “que passa com o jornalismo brasileiro? Onde está a produção de reportagens, investigações relevantes”? Não sem motivo, a participação de jornalistas de El Salvador, Costa Rica, etc, para não falar em países maiores, é muito maior do que a de brasileiros. Tirando as muito, muito honrosas exceções de sempre, ou tirando os congressos ou prêmios que são que nem festa junina, aqueles onde se paga pra ser convidado ou premiado, nos grandes e relevantes, a verdade é essa: nosso jornalismo virou uma ridícula irrelevância mundial.
Pois se nem na maior operação de corrupção da história o jornalismo brasileiro conseguiu produzir uma investigação sequer, ficando refém dos vazamentos, como será o resto?
E assim, nessa negação diária do que juramos lá atrás, nessa promiscuidade nossa de cada dia, nesse acocoramento para os senhores que nos passaram goela abaixo uma lei onde poderá uma mulher grávida trabalhar em condições insalubres, nos perdemos no caminho. Viramos, o jornalismo brasileiro, essa irrelevância absoluta. Dolorosamente irrelevantes. Dolorosamente cúmplices. Dolorosamente medíocres. Dolorosamente cumpridores de um roteiro que renega a essência de um ofício, com toda dor, delícia e inquietude que está em seu juramento. A história irá cobrar.
Vamos lutar e resistir, Lúcio!!
Sempre!
Parabéns por manter essa trincheira de resistência, Lúcio!
Simplesmente vc me representa. Inclusive no desejo de largar tudo e vagabundear por aí. Parabéns, jornalista decepcionado com o Brasil e suas redações, Mauro Sampaio.
Lúcio de Castro, você é o cara. Não sou jornalista e deve ser por isso que concordo com você.
Caro Lúcio, obrigado por nos brindar com sua escrita resistência, forjada na experiência da carne!
São escritas encarnadas que movem, já que a vida é movente, das praças, os que continuam “dando milho aos pombos”. E milho envenenado.
Mover não no sentindo de uma certa conscientização, mas na produção de algo que incomode, que contribua com uma ética da vida.
Sentindo a sua postagem, dentre as várias músicas que dizem sobre vagabundo, me recordei de “amiga vagabunda”, de André Prando.
Vagabundos. Presente!
Obrigado por mais um texto arrebatador.
Amigo Lucio, seu texto me toca a alma e não deixa morrer em mim a capacidade de se indignar, em momentos que estou prestes a entregar os pontos, devido a tanto rolo compressor.
Amigo, como alguém tão lúcido, com uma sensibilidade jornalística e humanística ímpar, pode ser torcedor fanático do time dos patrões marítimos, aqueles que se têm como donos do Brasil? Se valem do CRF quase como um veículo oficial de futebol!
Conhecedor que é dos porões do esporte patropi, de certo sabe o pesado papel desse clube em toda sorte de ladroagem.
É uma curiosidade sincera minha, he he, que tenho desde seus tempos de ESPN.
Todo modo, parabéns pela nova empreitada: meta bronca e siga em frente!
É lamentável que exista tanta gente que só saiba seguir ordem, como se nao tivesse consciência ou discernimento, isso vai do pm que só aprendeu a bater ao “jornalista” (da pra chamar assim?) que vomita as palavras que mandaram.
Por isso agradeço a sua forma de trabalhar e lutar, Lucio. Ocorre que hj eu procuro muitas vezes vir aqui e ler, por confiar que esse juramento tem se cumprido, como deve ser.
Simplesmente ( e tristemente) verdadeiro. A grande maioria dos jornalistas dos maiores meios de comunicação estão jogando o jogo das elites no qual o povo é invisível.
Ainda bem que temos grandes jornalistas em sites e blogs que lançam alguma luz na escuridão.
Parabéns Lúcio !