Um passo a mais na direção da barbárie foi dado. Breves palavras sobre o ato de ontem no Rio de Janeiro
Nosso mergulho nas trevas avança. Um passo na direção da barbárie foi dado ontem.
A imensa gravidade do que vi na Cinelândia obriga a urgência dessa garrafa ao mar.
O mais do que breve relato não será diferente de uma tentativa fidedigna de um relato jornalístico. Dos fatos e de alguns humilíssimos pitacos de análise do contexto e cenário.
Sobre os fatos, serei ainda mais objetivo e chegarei logo até a Cinelândia. Como cidadão e como repórter, sempre.
Nos arredores da Cinelândia, onde era o ato em si, a concentração, tivemos alguns episódios de quebra-quebra. Isolados, descolados da imensa massa que estava na praça para protestar contra as reformas. Na praça, tradicional local de manifestações da cidade, milhares se encontravam pacificamente, com seus cantos e gritos enquanto iria começar o ato em si, no palanque montado em frente as escadarias do Palácio Pedro Ernesto, a Câmara Municipal.
Na hora em que os oradores começavam a falar, a Polícia Militar iniciou um ataque de bombas de gás lacrimogêneo na multidão, que estava de costas para ela. Pelas costas. Obrigando essa mesma multidão, repete-se mil vezes, pacificamente, em paz, assistindo a um ato, a dispersar. Iniciando o horror que se seguiu. Pessoas massacradas nos becos, encurraladas nas vielas dos arredores. Um dos mestres desta Agência, Cid Benjamin, com quem eu estava lado a lado na hora em que o massacre começou, escreveu o seguinte hoje:
“Será que o fato de alguns mascarados – muitos deles infiltrados pelos serviços secretos da polícia – atirarem uma pedra ou um rojão nos PMs, ou quebrarem um ponto de ônibus, é justificativa para a barbárie instalada ontem nas ruas do Rio?
O desgovernador Pezão poderia dizer algo a respeito antes de se mudar para Bangu”.
Antes que algum apressado responda, vale repetir: tais fatos tinham sido nos arredores. O que causa mais estranheza, já que na praça, onde se inicia o massacre, estavam milhares em paz. Voltaremos a isso. É preciso ainda uma observação: nas poucas falas que tiveram tempo, houve crítica aos atos de destruição, aos Black Blocs, etc. E a defesa do ato de manifestação. O mesmo brutalmente reprimido.
Mas por hora, é preciso frisar o ponto principal disso tudo, o fundamental, o que é preciso gritar: ontem deparamos com um passo adiante rumo a um estado de exceção. No entanto, a violência contra as manifestações da Venezuela são muito bem cobertas na imprensa brasileira (e devem ser, sempre), mas no entanto, é surreal que a gravidade do que vimos ontem não tenha sido mostrada. Uma manifestação foi proibida. Na marra. Porque nenhum repórter que carrega tal nome no peito pode desconhecer o que se passou ontem na Cinelândia, a cronologia do massacre.
O passo adiante dado, o grave, é que tivemos ontem algo visto só nos piores momentos da ditadura. Um Ai-5 revivido. Será que até quem é contra tal luta não pode enxergar a gravidade dos fatos: o que aconteceu foi a proibição do ato de se manifestar. Previsto na constituição, sagrado em uma democracia.
Desenhando: o ato em si, o da Cinelândia, as pessoas que estavam ali, estavam em paz, em uma manifestação contra as reformas impostas por um congresso, esse sim, recheado de bandidos. A soldo de uma instituição envolvida em escândalos, com seus patos. E a polícia impediu a realização de um ato. Com deputados no palanque e representantes da sociedade civil. E um massacre se seguiu. Aquele que só consegue repetir “o vandalismo, e os…”, peço apenas atenção para os fatos, a cronologia deles, e a distinção entre quem estava no ato e nas ocorrências paralelas.
Diante do que, caímos no velho ensinamento: posso discordar profundamente do que você se manifesta, mas defenderei até os últimos dias que você possa se manifestar. Não concordo com quem foi as ruas dizer que “éramos milhões de Cunhas” ou coisa parecida. Mas defenderei até meu último dia que possam proferir tal coisa. Como puderam. E fizeram.
Reagrupada a multidão na Cinelândia depois da dispersão quase duas horas depois para então começar o ato, veio nova ação da polícia militar, com requinte de crueldade. Esperou as falas começarem novamente . E iniciou novo ataque de bombas para dispersar a multidão. Em resumo: proibiu e impediu a realização de um ato. No que suspeitávamos ser um pleno estado democrático de direito.
Desnecessário explicar a gravidade do passo adiante dado ontem no caminho das trevas. Preciso descrever ainda algumas cenas que vi. Para os que acham que tal repressão é legítima e tudo justifica: vi a PM atirando a esmo na famosa Escadaria do Selarón, na rua Joaquim Silva, onde estavam moradores, alheios ao ato, vendo o fim de tarde passar. Crianças, velhos…E a PM atirava bombas de gás lacrimogêneo sem sequer olhar quem estava ali. São testemunhas da cena inacreditável de barbárie o Pratinha, a Taynã, o Spolidoro e tantos outros, perplexos com o que viam.
Aos que mesmo assim acham tudo normal, vale a lembrança. Em 28 de março de 1968, mataram um estudante. Que nada tinha a ver com as manifestações. (como se o fato de ter ou não pudesse ser justificativa!). Depois de ontem, não há mais dúvida: teremos outros Edson Luís. Ao dar o passo de se sentir legítima ao rasgar a constituição e reprimir um ato legal, a PM, quer dizer, a PM não, o estado, avisa que também, como lá atrás, mandou os escrúpulos às favas. E que a partir de agora fazem o que quiserem. Sabem que a imprensa legitima. E que muitos, como lá atrás, também legitimam. Pedirão desculpas daqui a 30 anos. Mas terá custado algumas vidas. E nossa democracia.
Por fim, saio da descrição de uma reportagem do que vi e ensaio um pouco de uma análise, de tentar entender o que está acontecendo, a razão para que o estado, na figura da PM, tenha dado esses passos adiante, nesse dia que será o marco dos passos adiantes que vinham sendo ensaiados em uma série de medidas mas que ontem se consumou. Mas que pode ser também o dia de passos adiante na resistência a isso tudo.
Quando se sai de algo assim tão brutal, chocante e inacreditável em pleno 2017, provavelmente é comum a todo mundo querer compartilhar, dividir, entender o que se passou. Imediatamente trocar algumas ideias. Naquela confusão de sentimentos e estarrecimento diante do que tínhamos visto, recorri a boa resenha com um dos outros gurus dessa Agência Sportlight, o imenso médico, homem do samba, das ruas e almas, Ari Miranda, o Ari do Simpatia, do Bip. É algo como aquela frase do Galeano que tanto gosto, do menino diante do mar: “me ajuda a olhar”.
Conversando, tentando entender, esboçamos algumas pistas para entender o que vimos e o porvir.
Duas hipóteses parecem bem razoáveis diante do que vimos, da barbárie instalada que parece avançar. E não são conflitantes ou excludentes, muito pelo contrário, parecem se completar.
– Pezão passou os últimos dias de joelhos em Brasília. Não bastasse a própria situação, quase um pré-hóspede de Bangu, tem um estado falido (fruto um tanto muito de suas travessuras com o comparsa Cabral). A gratidão a Temer pela boia de salvação que parece ter acertado responde pela barbárie ao ato que protestava contra o chefe. Agradar ao chefe, pagar pela proteção ao irmão de Cosa Nostra.
– Junte-se a isso a certeza absoluta do que está diante dos nossos olhos: o estado perdeu o controle sobre sua polícia. Salários atrasados, a certeza de que acima deles está uma quadrilha e o exemplo do que isso significa, a impossibilidade moral e não só moral mas prática de quem está encalacrado no lixo punir, faz com que cada PM tenha virado um comandante de si mesmo. E assim, os atos de exceção se repetem, cada guarda da esquina é um potencial governador, é um potencial estado em si mesmo. Sem constituição, sem lei. Só vai piorar. E vai chegar aos que aplaudem essa falta de limites para os atos repressivos. Como é sempre com negros, pobres, favelados, que se dane. Mas quando o monstro toma forma, pode chegar ao seu filho. Voltamos a Edson Luis e a frase que marcou aqueles dias, dirigida aos mesmos de então que achavam que só se vitimavam os outros, os “comunistas, etc”. Era assim: “Mataram um estudante. Podia ser seu filho”. Pois muito bem. Saiba que a PM está sem controle, o estado sumiu. Reprimiam os “comunistas”. Deram um passo adiante. Tacam bombas em velhos, crianças. Amanhã pode ser seu filho.
Falávamos sobre isso, e hoje sai reportagem exatamente sobre o aumento dos “autos de resistência” da PM, aquele instrumento que justifica o homicídio de negros, pobres e favelados. (“os outros”). Preste atenção: em março, os tais autos subiram em 96,7%. Alguma dúvida ainda? Converse com algum morador de favela. As coisas que sempre foram brabas, mudaram muito nos últimos dias, para muito pior. Para usar a língua deles, estão largando o aço na favela. Mas não se entusiasme, caro defensor disso. Estão largando em todo mundo. E como já viram que as coisas fugiram ao controle, não é mais só na favela nem nos “comunistas” da passeata. Se o governador e o ex podiam, o subordinado também não precisa de lei. Perdeu-se o comando. E isso já chega nos lares chiques, nas panelas mais lustradas.
Insista que a solução para essa falta de comando e para tudo em curso é dar mais poder a essa repressão, é apostar em fórmulas fascistóides, e verá o que te espera. A barbárie deu um passo a mais ontem. Talvez agora alguns entendam porque “ser milhões de Cunhas” e promover a quebra da constituição para “parar tudo isso” era tão ruim para uma nação. Você pode ser contra todos os desmandos que ocorriam em Brasília. Creio que todos somos. Mas ao dar um atalho para que bandidos se arvorassem em ser o caminho, alguma coisa se quebrou. E parece ter sido a constituição mesmo. A barbárie deu um passo a mais desde ontem.
PS- como amante do jornalismo, só uma coisa mais me choca do que os fatos de ontem: não estarem nem de perto retratados no noticiário, na exatidão da cronologia ou geográfica de como e do que ocorreu. Sobre isso, deixo o convite para que leia “O juramento do jornalista” aqui nessa Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo. É também sobre isso tudo. É muito sobre isso tudo.
A bárbarie no Santos Dumont… Não sei se foi comentada anteriormente, confesso. Se na o foi, acredito que venha a ser.
Lúcio compartilho minha indignação pelo ocorrido e muito bem relatado por você.
Vi ao vivo pela TV e a polícia realmente passou por cima da manifestação pacífica, quando vinha atrás de uns poucos baderneiros. Não existia estratégia no ação da Polícia , apenas avançar. O mesmo que ocorre em incursões nas favelas , e que matam inocentes dando tiros em direção inclusive em escolas.
Sempre brilhante, Lúcio!
Um grande fã e seguidor aqui a te acompanhar!!!
Abração!!!
Grande texto Lúcio. Você viu que a Folha colocou na reportagem sobre o jovem UE foi agredido e agora está entre a vida e a morte, de que não foi um “PM” que o agrediu, mas sim um homem vestido de “PM”?
Obrigado Lucio!
Lúcido vc é foda!! Se a ex imprensa não mostrou, vc discorreu de uma maneira tão grande, que até uma múmia paneleira entenderia o precedente desse “impedimento”…vc é demias
Em frente Lucio!!
Está na hora de reagirmos, Lucio. Não dá mais para ficarmos no papel de saco de pancada da direita raivosa e seus cães militares
Lúcio, o terrorismo de Estado está em pleno vigor. A população está acuada. Nas ruas, nas favelas, em sua próprias casas, as pessoas tem medo. Já temos um Edson Luiz a lamentar. O estudante Matheus Ferreira da Silva, ferido no rosto por um golpe bárbaro de cassetete por um PM, está sedado e respira por aparelhos no Hospital de Urgências de Goiânia. Não há condição de aceitarmos passivamente essa situação. Na próxima segunda feira, dia 1º de maio, vai haver um ato na Cinelândia, a partir das onze horas, como resposta a essa barbárie impetrada pelos governantes e sob as bênçãos da grande mídia. Estaremos lá para, mais uma vez, dizer um NÃO ao arbítrio.
Parabéns Lúcio. Texto corajoso e corrente. Sou seu seguidor a partir de agora, que fui apresentado a seu jornalismo.
Como alguém que estava lá, que viu em choque o que aconteceu, que sentiu sem ter vivido (tenho 32 anos) o horror de uma época passada, correndo a esmo sem ter por onde fugir, sem ter onde se abrigar, caçado, agradeço pelo texto e pelo exercício primoroso do papel que se deve esperar de qualquer jornalista. Compremos nossas máscaras de gás. Calar nunca.
Perfeito texto. Apenas um comentário importante. As bombas começaram muito antes desse ataque que vc relata na cinelandia. Eu estava na alerj por volta das 15h, reinava absoluta paz. Caminhávamos em direção a candelaria. Do nada começaram as bombas. Muitas bombas. Muitas crianças, muitos idosos, muita correria, muitas pessoas passando mal. Isso foi muito antes da cinelandia. Daí eles partiram para cinelandia atirando bombas do caveirão por todo o trajeto e não pararam mais.
Excelente texto , Lúcio, como sempre !!!!! Gosto de ler seus escritos. “Me ajuda a olhar” !!!
Já estamos dentro dá barbárie !
As ações contra manifestações dos trabalhadores, que lutam para não perder direitos, duramente conquistados.
Já e a segunda etapa do golpe para quebrar a espinha dorsal do ” estado de bem estar social” que várias gerações tanto lutaram.
Foi assim primeiro na Europa; depois Argentina, Brasil e agora Venezuela , também cercada.
Os indignados de N.York tinham razão.
Está crise começou lá.
Os banqueiros querem tudo.
Vejam o doc ” insid Job “.
Completamente de acordo. Criaram o estado de exceção, aplaudiram a queda de um governo com mentiras que até os muros e asfalto de Braília sabiam. E, entramos na batbárie. Já estamos nela, mas esse é só o início.
O texto sobre o ocorrido na Cinelândia esta perfeito. Gostaria apenas de contribuir com as informações. Eu estava na frente da Alerj e todos se manifestavam pacificamente, muitas crianças, mulheres grávidas, idosos. Enfim, famílias inteiras achando que temos o direito de protesto, ledo engano. Quando estavamos, já de costas para a Alerj, indo em direção a Cinelândia (um outro grupo ia primeiro para Candelaria e depois seguir para Cinelândia) fomos surpreendidos por bombas, tiros de borracha e a tropa de choque acompanhada pelo caveirão, motos e outras viaturas vindo em nossa direção com muita violência. Pessoas paravam passando mal e eram alvejadas com tiros de borracha quase a queima roupa e a perseguição continuou por várias ruas. Quando enfim eu e mais um grupo de amigos, todos professores, alcançamos a Cinelândia achamos que tinha acabado perseguição, pois os atos de resposta a tanta violência sofrida estavan longe da Cinelândia, porém mais uma vez estávamos enganados. Passados algunsmminutos de PAZ a tropa chegou e mais uma vez fomos pegos de costas covardemente e perseguidos, mas desta vez não só por ruas a perseguição violenta foi por bairros… Enfim, o que aconteceu na Cinelândia esta muito bem relatado pelo Lúcio. Só quis falar um pouco da minha experiência de ser “criminosa” por um dia, ou ainda pior, como próprio Lúcio bem falou, foi dado um passo importante rumo ao Estado de exceção e isso nao dura um dia. Muitas vezes duram anos.
Rio, Goiânia, Viana (MA)! Missão ou omissão de uma força militar, forjada sob os auspícios do cassetete, da bala de borracha, do gás lacrimogêneo. Incrível a falta de percepção de seus integrantes de sua função púbica, da ética do cidadão. Até quando a sociedade civil irá lidar de forma pacífica com o modelo de polícia militar? Quantas vezes em campos de futebol testemunhei militares truculentos agredindo torcedores! Chega. Espero testemunhar o surgimento de uma polícia humanista.
Estamos sendo torturados por um sistema sujo,tendencioso e corrupto. Não há a quem recorrer .Esperar o quê de uma polícia truculenta,despreparada ? Lucio relatou muito bem o episódio da Cinelândia. É a realidade !