Com passaportes caribenhos, doleiros de Cabral abriram firmas em Malta meses antes de virarem delatores
Ao menos outros cinco citados na Operação Lava Jato aparecem nos registros de firmas no país.
Em janeiro deste ano, a Operação Eficiência, desdobramento da Lava Jato no Rio, desvendou novos capítulos do esquema de propina que girava em torno do ex-governador Sérgio Cabral. Após assinar acordo de delação premiada, os doleiros Marcelo e Renato Chebar admitiram ao Ministério Público Federal (MPF) que abriram contas no exterior que somavam US$ 100 milhões, relacionadas ao grupo de Cabral. Pouco tempo antes, porém, os operadores financeiros seguiam firmes em suas atividades, num pequeno país europeu que parece ainda estar distante do foco das investigações. Registros públicos revelam que os irmãos abriram duas empresas em Malta, em junho e setembro de 2016. E o mais curioso: ao criar as firmas, usaram números de passaportes das ilhas caribenhas de São Cristóvão e Neves.
As informações vêm dos Malta Files, o registro público de empresas no país e mais de 150.000 documentos vazados da empresa maltês Credence Corporate & Advisory Services, especializada em serviços legais, financeiros e corporativos. Estão sendo publicadas por The Intercept Brasil e Agência Sportlight em parceria com a rede European Investigative Collaborations (EIC).
As empresas dos irmãos Chebar são as mais recentes criadas em Malta por personagens citados nas investigações da Lava Jato. Mas há nos registros públicos do país pelo menos outros cinco nomes. Duas grandes empreiteiras, a Queiroz Galvão e a Odebrecht , abriram filiais por lá nos últimos anos. Um dos três principais acionistas da Andrade Gutierrez, Sérgio Lins Andrade, também aparece relacionado a duas firmas criadas em 2015.
Primeiro réu da Lava Jato este ano, por suposto pagamento de propina ao ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, o empresário Mariano Marcondes Ferraz teve negócios em Malta entre 2007 e 2009. Citado em investigações do MPF em 2015 por repasses e recebimentos vultosos a empresas ligadas ao esquema da estatal, o engenheiro Mário Ildeu de Miranda também abriu, em janeiro de 2016, uma firma no país europeu.
O que se vê na maioria dos casos é que as empresas são criadas em Malta com o auxílio de companhias locais especializadas neste tipo de serviço. No caso dos irmãos Chebar, por exemplo, a responsável foi a Fenlex Corporate Services, que atua em parceria com um escritório de advocacia, o Fenech & Fenech. Marcelo aparece como sócio da Apui Holdings LTD, fundada em setembro de 2016, e Renato, da Regulus Holding LTD, criada em junho do mesmo ano. Além de apresentar números de passaportes de São Cristóvão e Neves, a dupla declarou às autoridades de Malta residir em endereços em Lisboa. Os delatores estão em Portugal respondendo ao processo.
As delações dos irmãos Chebar foram um dos principais pilares da Operação Eficiência, que culminou com a prisão do empresário Eike Batista por suposto pagamento de propina a Sérgio Cabral, por meio de um contrato fictício e pagamento no exterior. Nas movimentações financeiras citadas pelos doleiros em seus depoimentos, há referências a Suíça, Luxemburgo, Bahamas e Uruguai como rotas do dinheiro ilegal. Assim como Malta, esses países são considerados válvula de escape de recursos seja pela ausência de transparência como pelo sistema de tributação privilegiado.
Entre 2007 e 2013, os Chebar também tiveram uma offshore no Panamá, incorporada pelo escritório de advocacia Mossack & Fonseca: a Wadebridge. Nesses registros, porém, eles apresentaram passaportes brasileiros. Os dados constam no acervo de quase 12 milhões de arquivos do escritório de advocacia que foi obtido pelo jornal alemão Süddeutsche Zeitung e deu origem à série Panama Papers.
Empreiteiras com rede de offshores
Diferentemente das pessoas físicas, que em geral abrem as firmas com apoio de empresas especializadas de Malta, as grandes empreiteiras brasileiras têm filiais que levam inclusive o mesmo nome no país. O interessante é notar que entre os sócios de duas dessas companhias aparece quase que uma rede de offshores em paraísos fiscais.
A Odebrecht, por exemplo, criou, em maio de 2012, a Odebrecht Solutions Malta Limited. Seus dois sócios são a Tenenge Overseas Corporation, sediada nas Ilhas Cayman, e a Odebrecht Solutions Inc, das Bahamas. Já a Queiroz Galvão International Construction Company, fundada em agosto de 2007, tem como sócias a Guararapes International LTD, a Skycrest Overseas Inc e a Timbauba International LTD. As três empresas estão registradas num mesmo endereço nas Ilhas Virgens Britânicas.
Ainda há nos registros públicos de Malta a Odebrecht Construction Malta Limited e a Odebrecht Engineering & Construction Limited. Os documentos indicam que essas empresas estão relacionadas com os negócios da empreiteira em Portugal, já que firmas e executivos que trabalham no país estão ligados a elas. Segundo ex-executivos da Odebrecht, o setor de operações estruturadas da empresa, responsável pelo pagamento de propinas, usava offshores para fazer operações no exterior. No entanto, não há qualquer citação às empresas abertas em Malta.
Apesar de a Andrade Gutierrez não ter uma filial em Malta, Sérgio Lins Andrade, um dos três maiores acionistas, abriu em dezembro de 2015 a Ceres Holding Limited no país. Uma empresa local, a FJV Management Limited, que tem ligações com mais de 300 outras firmas criadas em Malta, aparece como a outra sócia. A Ceres, por sua vez, é dona da Themis Consulting Limited, criada na mesma data, indicando que ela também pertenceria a Sérgio Andrade.
O acionista da Andrade Gutierrez não está diretamente no foco da Lava Jato. No entanto, em depoimento de delação premiada divulgado em abril, o ex-executivo da Odebrecht Henrique Valladares citou nominalmente Sérgio Andrade ao falar sobre suposto pagamento de R$ 50 milhões de forma ilícita ao senador Aécio Neves, relacionado à construção da hidrelétrica de Santo Antônio, em Rondônia. Segundo Valladares, ele sabia do pagamento e “pagou sua parte” (R$ 20 milhões). No mês passado, Andrade também foi chamado como testemunha de defesa do ex-governador Sérgio Cabral num dos processos decorrentes da Operação Calicute.
Outro personagem importante da Lava Jato que teve negócios em Malta é o empresário Mariano Marcondes Ferraz . Em abril de 2007, ele criou a Dhamar Participation Limited. Em setembro de 2009, a firma começou seu processo de dissolução. Seus últimos documentos datam de 2011. Ferraz foi preso em 26 de outubro do ano passado sob a acusação de pagar propina ao ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa para conseguir a renovação de um contrato entre a empresa Decal do Brasil – da qual ele era representante – e a estatal, em 2011. O empresário foi solto em 3 de novembro após pagar fiança de R$ 3 milhões. Em 2017, ele foi o primeiro a se tornar réu em processos decorrentes da operação.
Citado em 2015 em investigações do MPF na Lava Jato, o engenheiro Mario Ildeu de Miranda fundou em Malta, em janeiro do ano passado, a Lusoil Project Management Limited. A firma foi aberta em sociedade com a Trident Corporate Services, empresa que oferece serviços financeiros e aparece relacionada a outras 72 companhias registradas no país. Na mesma época, foi criada a Seaoil Project Management Limited, com a Lusoil entre os sócios. O endereço dado por Mario Miranda foi o de um sobrado na Rua do Passadiço, em Lisboa.
O engenheiro foi citado em documentos do MPF porque a empresa EPGN Engenharia, controlada por ele, recebeu, entre 2006 e 2013, cerca de R$ 28,6 milhões de consórcios e empreiteiras investigadas por repasse de propina a dirigentes da Petrobras, apesar de ter um quadro que não passou de três funcionários. À época, os procuradores pediam que fossem “refinadas” as apurações em relação a Mario Miranda. Não há, no entanto, citações mais recentes nos processos ao engenheiro.
Banco usado para propina
Além dos seis nomes citados na Lava Jato presentes diretamente nos registros de Malta, os documentos públicos do país também mostram indícios da presença do banco utilizado pelos irmãos Chebar para a transferência de US$ 16,5 milhões de suposta propina de Eike Batista para Sérgio Cabral: o TAG Bank. A instituição financeira, com sede no Panamá, é controlada pelo banqueiro Eduardo Plass, alvo de condução coercitiva na Operação Eficiência.
Em Malta, foi aberta, em janeiro de 2016, a APV Europe Investments Limited, que tem como diretor o gerente do TAG Bank Alexandre Lima Barigchun. Antes de se mudar para o Panamá, ele fez carreira no Brasil como jogador de basquete, passando, entre outros times, pelo Vasco da Gama.
A empresa foi criada com capital de 5 milhões de euros e tem como dono de todas as ações um fundo de investimento chamado VPA, com sede nas Ilhas Cayman.
O primeiro documento que aparece disponível no processo de constituição da firma é exatamente do TAG Bank, confirmando que foi feito numa conta do banco o depósito do dinheiro necessário para a abertura da APV Europe.
Nesse mesmo documento, apesar de seu gerente ser diretor da empresa criada em Malta, o TAG se isenta de qualquer obrigação em relação ao negócio ou envio de informações adicionais.
“Futuros investimentos”
Renato e Marcelo Chebar: O advogado Antonio Figueiredo Basto, que representa os irmãos no processo relacionado à Lava Jato, foi procurado por e-mail, mas não respondeu. Ele também representa o empresário Mariano Marcondes Ferraz. Neste caso, informou que seu cliente não iria se pronunciar.
Acionista da Andrade Gutierrez, Sérgio Lins Andrade disse, por meio da assessoria de imprensa da construtora, que as empresas em Malta “foram abertas com o objetivo de futuros investimentos no mercado comum europeu, dado que, devido a relação entre o país e o mercado comum europeu, existem incentivos para tal”. Ainda segundo a nota, “no entanto, essas empresas ainda não foram operacionalizadas”. “Portanto, não foi realizada qualquer integralização de capital nas mesmas. Sendo assim, não houve qualquer depósito realizado nas empresas ou operações realizadas. No dia em que for feito qualquer investimento será devidamente reportado à Receita Federal do Brasil. As empresas em questão não têm relação com os negócios da AG”, conclui o texto.
Sobre as acusações envolvendo Sérgio Andrade na Lava Jato, a nota afirma que “a Andrade Gutierrez segue colaborando com as investigações em curso dentro do acordo de leniência firmado pela empresa com o Ministério Público Federal e reforça seu compromisso público de esclarecer e corrigir todos os fatos irregulares ocorridos no passado”.
A construtora Queiroz Galvão não quis se manifestar.
A Odebrecht enviou a seguinte nota: “A Odebrecht está colaborando com a Justiça no Brasil e nos países em que atua. Já reconheceu os seus erros, pediu desculpas públicas, assinou um Acordo de Leniência com as autoridades do Brasil, Estados Unidos, Suíça e República Dominicana, e está comprometida a combater e não tolerar a corrupção em quaisquer de suas formas”.
O engenheiro Mario Ildeu de Miranda não foi localizado pela reportagem para comentar o caso. Sua empresa EGPN não consta mais como ativa no site da Receita Federal, e o telefone de contato que consta no cadastro é de um escritório de contabilidade.
O gerente do TAG Bank Alexandre Lima Barigchun não foi localizado para comentar o caso. A reportagem entrou em contato com a gestora de investimentos Opus, da qual o dono do TAG Bank Eduardo Plass faz parte no Brasil, mas não obteve retorno.