O incrível não é o roubo do caminhão. O escândalo é que na favela da Pedreira a expectativa de vida é igual a do Haiti.
Aimagem rasgou a tela. A voz do apresentador e a narração mais ainda.
Eram as primeiras horas da sexta-feira, 8 de dezembro.
A edição do Bom Dia Rio corria sonolenta como é natural ao horário. De repente, uma virada. Um incrível flagrante: um roubo de carga em um caminhão ao vivo. Para completar, a 500 metros de uma blitz de soldados da Força Nacional.
Na favela da Pedreira, no chamado Complexo da Pedreira, em Costa Barros, zona norte do Rio, formado pelas favelas da Pedreira, Lagartixa, Quitanda, Final Feliz, Terrinha e algumas outras pequenas comunidades.
Sequestrado, o caminhão encostou na favela e foi descarregado, sob a vigilância de traficantes armados com fuzil.
Tudo o que estava programado pro jornal foi pro espaço. Acertadamente, claro. Do Globocop, as imagens captavam toda a dantesca história.
Do estúdio, o apresentador se encheu de adrenalina. Clamava a ação da polícia, falava do escândalo que era aquilo, bandidos agindo a luz do dia, ao vivo, e nada acontecia.
Insistia muito no clamor pela ação. Antes e depois de estar na linha com um porta-voz da Polícia Militar.
Insistia no tom do escândalo que era aquilo tudo, a vergonha, ainda que não necessariamente com tais palavras.
Não há discussão alguma sobre o evidente fato jornalístico que justifica mudar o curso de um jornal. Era mesmo para parar tudo. No jargão da profissão, virar o espelho do jornal.
O ponto é outro.
Embora sempre tenha que se relativizar o calor do “ao vivo”, a necessidade de se equilibrar achando o ponto entre não ser monótono e não ser sensacionalista, o diabo não é nem tudo isso.
O diabo mesmo é o que fica claro em uma situação como a tal: o olhar reinante para tudo o que não é Ipanema, Leblon e Higienópolis. Como olhamos para tudo o que não é Ipanema, Leblon e Higienópolis. Para alguns, bem sabemos, tudo o que não é Ipanema, Leblon e Higienópolis é “coisa de preto”.
É esse olhar de que a única coisa escandalosa naquela cena é um caminhão sendo descarregado. Que o escandaloso é tão somente a cena de violência (mais uma) na cidade.
O escândalo vai muito além.
E o perigo é sempre não contextualizar, ser capaz de ver apenas o dedo que aponta para a lua e não a própria lua.
As imagens eram tão claras. Nem precisou abrir muito a câmera. Estava tudo ali. Entrou tudo no ar.
O grande escândalo era e é a pobreza daquele lugar, igual a tantos outros desse país.
O grande escândalo, e bastava olhar um pouco além do caminhão, é a tão evidente carência de tudo, ausência de tudo. O paupérrimo da vida por ali. O abaixo das mínimas condições de dignidade e de vida humana.
O grande escândalo é o clamor por ação sem qualquer inteligência independente do que vier a acontecer. Afinal, ali eram só eles e não nós, como diria aquele outro apresentador, o da “coisa de preto”. O que certamente não seria o olhar se fosse em Ipanema, Leblon e Higienópolis. Parece que não aprendemos nada na “épica narrativa da Tomada do Alemão”.
Bastava olhar. O caminhão ali é consequência e não causa.
As imagens são devastadoras. Olhe bem as casas, a gente em volta. A pobreza grita. E grita muito mais quando está a poucos quilômetros de tanta riqueza.
A ausência do estado é devastadora e grita na tela muito mais do que alguns meninos, “quase todos pretos, quase pretos de tão pobres” descarregando o caminhão.
Os anos de abandono. Aquilo que Galeano chamou de “pequena chateação que o sistema não previu: a sobra de gente”.
Como não previu, imaginou que podia jogar para baixo do tapete. É a história do Brasil nua e crua, às seis da matina entrando pela sua sala: os excluídos de sempre, aqueles jogados para fora do jogo, empurrados para bem longe de “onde importa” a cidade, “a sobra de gente”, os pretos e os quase pretos e os quase pretos de tão pobre rompendo enfim o pior dos destinos: a invisibilidade social, sendo mostrados pela primeira vez na televisão. “Ai o meu guri…”, “acho que tá lindo”… Mostrados só quando descarregam um caminhão de carga… “O guri no mato…”.
Os filhos e netos das remoções que imaginaram resolver a “pequena chateação” jogando eles pra baixo do tapete lá na década de 60. Os tataranetos do navio negreiro. Não contavam que, se esquecidos ali, fora do sistema, um dia dão sinal de vida.
O grande escândalo é saber que um menino daqueles, por turno de 12 horas no tráfico como olheiro, ganha trinta reais. Sem folga, sem feriado, sem hora extra. Algo tão sujo como o corte na remuneração e o fim das leis na reforma trabalhista de Temer, aplaudida pelos patos amarelos. Fazendo a rápida conta, são R$ 900 no mês. Se avisam que faculdade não é pra eles, que a possibilidade de romper a invisibilidade é tão remota quanto a porta da esperança, resta ser caixa do mercado, se conseguir. Aquele que agora não ganha mais hora extra e feriado. Pra no fim, tirar por aí, mais ou menos o mesmo.
O grande escândalo, caros apresentadores e colegas que botam no ar essas notícias, caros todos nós, é muito maior do que aquela cena. Que, repete-se, deve ir ao ar, mas se não for contextualizada, é apenas mais uma a não olhar para tudo isso, a não conseguir ver a pobreza indecente e obscena a metros do caminhão, a ausência de tudo…
O escândalo muito maior é um destino traçado tendo 17 anos a menos de expectativa de vida do que o menino que nasce a poucos quilômetros dali.
Na melhor das hipóteses, claro. Porque, afinal, dificilmente um menino daqueles irá até o fim de la vida loca.
Escândalo é já ter traçado ao nascer que a expectativa de vida do menino da Gávea é de 80,4 anos e a dele, filho de Costa Barros, o penúltimo (125º lugar) no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos bairros do Rio, com 63,9 anos, na frente apenas do Complexo do Alemão (Fonte: Instituto Pereira Passos). Antes portanto de poder parar pela reforma da previdência gritada todos os dias, quase matéria paga nas mesmas TVs que mostram ele de fuzil.
Rezemos pelo Haiti. Devemos rezar. Mas o grande escândalo é que a expectativa de vida do menino nascido na Pedreira, em Costa Barros é rigorosamente igual aos meninos das adjacências de Cité Soleil, a imensa e conhecida favela haitiana. Os mesmos 63 anos. É exatamente isso: um nascido na Pedreira tem a mesma expectativa de alguém que nasce no Haiti.
Assim, quando assistir as imagens do degredo e inferno haitiano, lembre, ele é logo ali. Saindo da Central, pegue o ramal de Belford Roxo e conte mais treze estações e seja bem vindo ao Haiti.
Estação de Costa Barros, esquina da Pedreira e da Quitanda. Irmã na obscena pobreza haitiana. Onde o que deu errado no plano foi apenas a “pequena chateação” de que não dá pra esconder gente por tanto tempo. Que gente por vezes avisa que quer vida, que quer os 17 anos a mais como o garoto do outro extremo da linha do trem, que quer vida em abundância, que quer ser feliz.
Ou ao menos, se não puder ter os direitos humanos que tanto chocam a alguns, querem pelo menos os direitos animais: abrigar-se das intempéries, comer, dormir.
No Brasil atual, parece que é tempo de voltar a Sobral Pinto: para alguns, já não falamos em direitos humanos, precisamos garantir ainda os direitos animais.
O Haiti brasileiro parece ter caído em um trágico buraco negro. Nem mesmo na geografia da cidade tem alguma relevância. Se as favelas da Zona Sul devem estar vigiadas, Costa Barros não está no caminho de nada, salvo no meio do ramal de Belford Roxo. Mas por não interessar por nada, foi crescendo na direção da Avenida Brasil…E agora bate a porta. Lembramos deles pelo roubo de carga apenas. Essas pequenas chateações…
De um lado, a Pedreira. Do outro, o Chapadão. Se matando todos os dias em guerra de facções que a ninguém parece importar enquanto o barulho dos tiros não ecoa onde a vida vai aos 80 anos.
A câmera do helicóptero mostra os soldados ali a 500 metros. Nem eles entram ali. Quando entram, sabemos… Da próxima, vamos pedir pra abrir um pouco mais ainda a imagem. O grande escândalo não é o caminhão de cargas sendo descarregado. O grande escândalo é o Haiti que vive ali quando abre-se a imagem. Essa pequena chateação que agora deu pra avisar que existe.
Simplesmente magnífico!
Oxalá tenhamos um dia, uma mídia que tenha um olhar abrangente sobre a sociedade.
Pois hoje o olhar é só para o sensacinalismo, e somente para os interesses de uma elite descompromissada com a justiça social.
Essa triste realidade só vai mudar com renovação política e mais ações sociais por parte da população, cada um de nós devemos fazer a nossa parte
Boa, Lucio!
É ótimo saber que ainda temos jornalistas que vão além do óbvio e conseguem aprofundar os debates.
Esse é o brasil (com letra minúscula mesmo) que interessa a uma plutocracia miserável, que, mais uma vez, acerta o coração dessa jovem e natimorta Democracia. Eles não suportam essa “maldita” Democracia, que tenta melhorar a vida daqueles que nada possuem. Estes nascem e se reproduzem para servir, como escravos comportados, aos senhores do dinheiro e do poder.