Homem da ditadura, presidente da CBF recebe como anistiado político *
* A reportagem abaixo foi publicada no dia 14 de janeiro de 2016, na Agência Publica, quando não existia ainda a Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo.
Com a punição a Marco Polo Del Nero por parte da Fifa, suspenso 90 dias por corrupção, em decisão divulgada nesta sexta, 15/12, resolvemos republicar a reportagem abaixo. Pela certeza de que é preciso que se conheça nas mãos de quem está o futebol brasileiro às vésperas de mais uma Copa do Mundo. O 7 x 1 que não termina. Para que todos saibam quem é o Coronel Nunes, o homem que neste exato momento está sentado na cadeira que comanda a CBF, embora seja de amplo conhecimento que Del Nero segue por trás de todos os movimentos do homem da ditadura, Coronel Nunes.
Com o reiterado devido agradecimento para a Agência Publica (apublica.org), não só pela publicação em 2016, como também pelo excelente e ímpar serviço prestado ao jornalismo de maneira geral.
Íntegra da reportagem de 14/1/2016, na Agência Pública:
Homem de confiança do regime militar durante os anos da ditadura, o novo presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) recebe um saldo mensal de R$ 14.768,00 da Força Aérea Brasileira (FAB) como anistiado, “vítima de ato de exceção de motivação política”.
A decisão do Ministério da Justiça, publicada no Diário Oficial da União de 14/5/2003 e assinada pelo então ministro Márcio Thomaz Bastos, concedeu, além das prestações mensais, uma indenização retroativa de R$ 243.416,25. Porém, os anais das Forças Armadas, da Polícia Militar do Pará – analisados pela reportagem – e a história de vida de Antônio Carlos Nunes de Lima, 77 anos, retratam um quadro oposto ao de alguém sacrificado nos anos de chumbo.
Os relatórios reservados pós-golpe de 1964 da Aeronáutica mostram Nunes de Lima como um servidor exemplar e apegado às diretrizes do regime. “A serviço das instituições racionais permanentes”, segundo os relatórios.
Nove dias depois de deixar a FAB no posto de cabo por tempo de serviço (entrada em 7/1/1957–saída em 30/12/1966), ele ingressa na Polícia Militar do Pará (entrada em 9/1/1967 – saída em 21/2/1991). Ali, progride sem entraves na hierarquia da PM durante os anos ditatoriais, nos quais a instituição se notabilizou como braço de apoio ao Exército na repressão e extermínio à guerrilha do Araguaia e aos demais movimentos populares e de resistência no Pará.
Confiança do regimeOnze meses depois da entrada na Polícia Militar, ele foi declarado aspirante a oficial da PM. Da entrada, em janeiro de 1967, até a aposentadoria como coronel, em fevereiro de 1991, foram mais seis promoções. Uma por tempo de serviço e cinco por merecimento – destas, quatro são no período ditatorial. Em setembro de 1969, ainda como primeiro-tenente, passa a tesoureiro do Gabinete Militar do Estado.
Em maio de 1971, vem a prova definitiva de confiança do regime em Antônio Carlos Nunes de Lima: é nomeado comandante da Companhia Independente da Polícia Militar de Santarém (CIPM, atual 3º Batalhão PM/PA), onde fica até abril de 1974.
O comandante do CIPM de Santarém era estratégico para o general Médici. A cidade foi uma das mais vigiadas pelos militares no início dos anos 1970. Em 21 de setembro de 1969, o governo, através do Decreto-Lei 866, inclui Santarém como “Área de Segurança Nacional” (ASN).
As cidades nomeadas como “Áreas de Segurança Nacional” eram regidas pela “Doutrina de Segurança Nacional”, ficando para trás os princípios constitucionais e a legislação civil. Um dos detonadores da inclusão de Santarém como “ASN” foi a vitória, em 1966, do candidato do MDB Elias Ribeiro Pinto sobre o da Arena, Ubaldo Corrêa, nas eleições para prefeito. Um longo embate se segue, com golpe dos perdedores, resistência, até culminar em passeata do medebista em 1968, recebida com forte repressão da PM, mortes e prisões. Pelo ambiente conturbado e pelo potencial explosivo da região, já assombrada pela presença da guerrilha do Araguaia, Santarém vira “ASN” e pouco depois, em 14 de julho de 1970, pelo Decreto-Lei 7125, é criado o CIPM de Santarém.
De comandante a prefeito, de prefeito a coronelFoi assim que Antônio Carlos Nunes de Lima saiu do Gabinete Militar do Estado e virou comandante do batalhão de Santarém em setembro de 1971, com a missão de intensificar os objetivos pelo qual tinha sido criado: “salvaguardar e manter a Ordem Pública nas regiões do Médio e Baixo Amazonas, Alto e Baixo Tapajós, bem como região do Xingu”.
Um total de 700 homens são incorporados ao CIPM de Santarém, e uma repressão brutal se instala na área. De acordo com o professor da Universidade do Oeste do Pará Anselmo Alencar Colares, pós-doutor em Educação, com o CIPM “os militares e políticos da Arena passavam a ter maior segurança para executar toda espécie de ação sem o receio de que pudessem ser importunados com algum tipo de manifestação”. O objetivo maior era a total eliminação de qualquer possibilidade de surgimento de um novo foco guerrilheiro na região. Para intimidarem os moradores e demonstrar força, os batalhões das Forças Armadas e da PM faziam demonstrações de treinamento antiguerrilha.
As expedições para matanças de índios, que viriam a ser chamadas de “correrias”, tornam-se comuns na região, realizadas pelo Exército com apoio da PM.
Os batalhões de Polícia Militar também davam suporte para a execução dos Planos de Integração Nacional (PIN), que abriam estradas, e foram responsáveis pelo genocídio de milhares de índios – em todo o país, a Comissão Nacional da Verdade contabilizou 8 mil indígenas mortos pela ditadura. Comissões da Verdade nacionais e estaduais da região investigaram os massacres. No Pará, os Parakanã e Arara foram assassinados nas “correrias”.
Os bons resultados à frente do CIPM de Santarém garantem uma promoção por merecimento ainda na função, e Nunes de Lima chega a capitão em 1972. Em 1974 se torna ajudante de ordens do governador. E, em novembro de 1977, recebe como demonstração de confiança e pelos bons serviços o cargo de prefeito da sua natal Monte Alegre, no oeste do Pará.
O então capitão entra na última leva de prefeitos biônicos do país, escolhidos pelo governo militar, que em 14 de abril de 1977, pela Emenda Constitucional nº 8, determina que prefeitos serão eleitos diretamente apenas dois anos depois (em 1980), numa tentativa de diminuir a pressão popular que crescia nas ruas. Presidente e governadores seguiriam ainda por eleição indireta.
Ao deixar a prefeitura de Monte Alegre, em 1980, Nunes de Lima retorna à caserna, onde segue sendo promovido até ir para a reserva da PM, em 1991, no posto de coronel, designação que acompanha seu sobrenome até hoje.
Anistia políticaO processo que assegurou “reparação econômica de caráter indenizatório, em prestação mensal, permanente e continuada” é apenas mais um capítulo polêmico na trajetória do coronel Nunes.
“Não há comprovação suficiente da existência de razões que justificassem o deferimento do pleito de anistiado político”, avaliou o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) e Advocacia-Geral da União (AGU) sobre o caso do atual presidente da CBF. “Tal situação, aliada à ausência de qualquer elemento individualizado nos autos a indicar perseguição política do requerente, indica, pois, a impossibilidade da incidência do reconhecimento da condição de anistiado político.” E completa: “A concessão de anistia sem que tenha havido comprovação de motivação exclusivamente política ofende diretamente a Constituição Federal”.
Procurada pela reportagem, a FAB, por meio da assessoria de comunicação, informou que a saída de Nunes de Lima se deu por ter sido “licenciado do serviço ativo em virtude de conclusão de tempo de serviço na graduação de cabo”.
A defesa do coronel Nunes para obtenção da anistia política tem como base a contestação da Portaria 1.104GM3, pós-golpe, de 12/10/1964. De acordo com a sustentação, tal portaria, no caso dos cabos, “limitou arbitrariamente as prorrogações de tempo de serviço por um período até oito anos”.
A limitação seria uma resposta ao engajamento de alguns cabos em atos de resistência ao golpe, casos específicos do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. O seu objetivo era atingir especificamente os cabos que já estavam na corporação e eram críticos ao regime. A portaria em questão tinha o objetivo de “renovar a corporação como estratégia militar, evitando-se que a homogênea mobilização dos cabos eclodisse em movimentos subversivos, pois havia descontentamento dentro da FAB com os acontecimentos políticos do país”, segundo consta no processo.
Em 9/5/2003, o então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos assina a concessão de anistia para Antônio Carlos Nunes de Lima.
Nove anos depois, em 15/2/2011, é instituído o “Grupo de Trabalho Interministerial” (GTI), formado por membros do Ministério da Justiça, Advocacia-Geral da União (AGU) e Ministério da Defesa, com o objetivo de instruir a revisão da concessão de anistia que beneficiou os cabos afastados com base na Portaria 1.104. A anistia dos cabos passa a ter “averiguação individual”, caso a caso, e não como da forma genérica de antes, julgados em grupo – o elemento comum entre todos era a alegada saída da corporação por perseguição política, de acordo com a Portaria 1.104.
Grupo de trabalho contesta reparação econômicaNa análise individual do caso do coronel Nunes, o GTI afirma que “não foram apontados fatos que evidenciem ou comprovem motivação política ou ato de exceção no desligamento do requerente dos quadros da Força Aérea Brasileira. Houve no caso tão somente a remissão a entendimento firmado de maneira genérica e abstrata. Desta forma, não há comprovação suficiente das razões que justificassem o deferimento do pleito de anistiado político. Tal situação, aliada à ausência de qualquer elemento individualizado nos autos a indicar perseguição política do requerente, indica, pois, a impossibilidade da incidência do reconhecimento da condição de anistiado político”. O parecer conclui: “Aliás, pensar de maneira diversa, na ausência deste pressuposto fático basilar, representaria grave mácula à medida reparatória transicional e aos que dela verdadeiramente fazem jus”.
Em 9/8/2011, por considerar o caso do coronel Nunes em desacordo com o entendimento dos casos em que a anistia deve ser concedida, o GTI pede a revisão do processo. Uma batalha jurídica é travada entre a defesa do atual presidente da CBF e o GTI, que, após observar os argumentos da parte, afirma que a “vida militar do interessado transcorreu na mais absoluta normalidade” e que “é imprescindível que haja nexo entre os fatos e a exclusão do militar em comento das fileiras da FAB. Assim, relatos genéricos referentes à base do Rio Grande do Sul não guardam pertinência com a atuação do militar que servira no extremo oposto do país, mais precisamente em Belém do Pará”.
Em fevereiro de 2012, o GTI propõe a anulação do processo de anistia do coronel Nunes.
Assim, em 31 de julho de 2012, pela Portaria Ministerial 1.622, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, anula a anistia do coronel Nunes. A decisão é publicada no Diário Oficial da União no dia seguinte e entra em vigor.
Porém, poucos dias depois, no dia 3 de agosto, nova portaria do ministro Cardozo torna sem efeito a anulação, e a anistia do coronel Nunes volta a vigorar.
Histórias da repressãoOs nove dias de intervalo entre a saída do Exército e a entrada na PM compõem um aspecto a ser analisado com interesse. É corrente entre estudiosos do tema que os serviços de informação do regime militar tiveram rígido controle sobre a vida dos cidadãos brasileiros. Assim, é absolutamente improvável que alguém com passagens consideradas “subversivas” viesse a deixar as Forças Armadas para ingressar na PM.
O historiador Carlos Fico, um dos maiores estudiosos do período da ditadura militar e do funcionamento dos órgãos de informação, acredita que poderia até ser possível naquele ano de 1967 tal cochilo do regime em instituições de diferentes estados. “Os órgãos de informação vão se estruturar efetivamente no fim de 1968, principalmente em 1969. Entre 1964 e 1968 é possível imaginar falta de comunicação e passar alguém envolvido em algo. Mas, de um estado para outro, não no mesmo estado, onde estas instituições se comunicavam”, afirma.
O posto do cabo Nunes na FAB foi lotado durante todo o tempo de serviço na Base Aérea da FAB em Belém; e o seu ingresso na Polícia Militar é na mesma cidade. Além disso, ele seguiu na PM após a tal estruturação efetiva dos órgãos de informação da ditadura militar, sempre ascendendo na corporação.
O papel da Polícia Militar do Pará, nos anos de chumbo, período no qual o presidente da CBF alcançou a alta hierarquia, também é analisado por Airton dos Reis Pereira, doutor em História, professor da Universidade do Estado do Pará e especialista em história da Amazônia. “A Polícia Militar do Pará tem um histórico de violência e impunidade, envolvimento de seus membros com a pistolagem e repressão aos movimentos sociais e populares e muitas vezes assassinato dos integrantes. No período da repressão à guerrilha do Araguaia, a PM auxilia as tropas de repressão do Exército com blitze na Transamazônica e na repressão aos trabalhadores e moradores das redondezas, líderes sindicais e religiosos. Essa repressão da PM segue nos castanhais, fazendas, onde muitas vezes são contratados, no Bico do Papagaio. São inúmeros eventos. Creio ser impossível alguém da hierarquia da PM do Pará ter passado imune a tudo isso naquele período”, afirma.
A reportagem tentou contato com o coronel Nunes diversas vezes e por diversas formas. A assessoria da CBF não respondeu às questões que foram enviadas ao seu atual presidente. Também o recado deixado no celular do coronel Nunes não foi respondido, assim como o e-mail enviado para o advogado do presidente da CBF.