A vitória do México e uma lavanderia chamada futebol
Porfirio Diaz foi mais um entre tantos na triste história latinoamericana a notabilizar-se por características que ainda estão por aí: golpista, entreguista e com nojo das camadas mais populares. Mas nem os piores inimigos podem tirar um mérito: ser o autor de uma das mais espetaculares frases a definir seu país: “Pobre México. Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”.
Foi essa proximidade de um vizinho imperialista e sempre ávido a subjugar que fez o México perder terras e ver esses pedaços de pátria anexados a sete estados: Texas, Novo México, Utah, Arizona, Nevada, Califórnia e Colorado. Por ironia, o tirano americano da vez quer aumentar o muro e sem devolução de terras. E no momento protagoniza uma das mais repugnantes e sórdidas práticas da história, separando pais e filhos de imigrantes. Como mexicanos, entro outros tantos pais e filhos do lado de baixo do Rio Bravo sendo separados em boa parte de terra que já foi deles.
É também essa proximidade do maior mercado consumidor do mundo que faz o vizinho ter visto o narcotráfico entricheirar-se em todos os segmentos da sociedade. E hoje o estado mexicano ter os tentáculos do narcotráfico penetrado em todas as suas instâncias. Cada dia mais longe de Deus e perto dos Estados Unidos, padece o México.
Não poderia ser diferente nas demais instituições da sociedade civil. Narcotraficantes dão as cartas. Seria ingenuidade demais achar que o futebol estaria fora disso tendo a força e paixão que tem naquele país, movimentando a quantidade de dinheiro que movimenta e com as imensas possibilidades de lavanderia que tem.
Quando Lozano fez o gol contra a Alemanha que botou um país a respirar aliviado por breves momentos e esquecer a tormenta que se só cresce às vésperas da já mais sangrenta eleição da história do país no próximo 1º de julho, (e o que será desse México transformado em vulcão com uma Copa e eleição ao mesmo tempo…), não foi só a terra que tremeu por lá.
Por aqui também alguns rescaldos do tremor fizeram se sentir. Na mesma hora, foi possível ver alguns comentaristas exaltando o modelo do futebol mexicano, com seus clubes-empresa tão mais modernos do que por aqui. Sempre a modernidade. Deles. Sempre o discurso do “lasser faire” gritado imediatamente. Explicando o sucesso pela força do modelo de clubes-empresa da liga mexicana.
Se não é alcançável o modelo europeu por aqui por muitos anos, fácil, que se adote o “vitorioso modelo mexicano” em contraponto ao arcaico modelo brasileiro. Clubes privados, a solução de tudo. Foi imediata a grita.
Em tal lógica, a prova definitiva do sucesso e da supremacia de um modelo sobre o outro está nas próprias convocações para a Copa, que gritam o sucesso liberal mexicano: dos 23 de Osório, oito atuam no próprio país. Ao passo que três modestos reservas na lista de Tite estão por aqui, ainda assim reservas sem maiores aspirações e um deles só porque Daniel Alves ficou de fora na hora H. Assim, como discutir a força da Liga Mexicana? Que se vendam os clubes, só os clube-empresas salvam, dizia a imediata cantilena.
Minha dúvida nessas horas sempre é quantos desses embarcam de bucha na falácia de espertalhões e repetem sem saber efetivamente o que falam, e quantos são os espertalhões.
Acredito sempre que a maioria tá de bucha. E ignora uma série de razões e acima de tudo os contextos de cada coisa. E nesse sentido, é democrática a ignorância e a falta de contextualização.
Num jornalismo cada vez mais focado no micro, na superespecialização do comentarista que sabe quantas vezes o fulano atuou na terceira divisão do México este ano, quantas diagonais fez e quantas vezes a zona de calor indicou que estava no ridiculamente chamado de “último terço” do campo, tampouco existe a preocupação com a contextualização dos fatos, de entender outras razões para o sucesso de uma liga…Afinal, para muitos, esporte e política nada tem a ver mesmo, né? (aqui é preciso a ressalva, ainda que ela nada adiante aos que não querem ler: não há mal algum naquele que sabe minuciosamente o micro. O problema é só querer saber dele. Por bem, alguns poucos parecem preocupados com o micro e com o contexto. Louvados sejam).
Porque louvar os oito que jogam na liga mexicana em detrimento dos três pobres diabos do Brasil em razão de lá terem atingido a modernidade e aqui viver o atraso é antes de tudo desonesto. E aí o mundo se divide realmente em espertalhões e buchas. Os primeiros sabem o contexto mas omitem. Os segundos ficam de pobres ventríloquos.
Longe daqui e nem deveria ser preciso dizer, defender o modelo retrógrado e patético vigente aqui. O mesmo que leva o Coronel Nunes ao comando de uma delegação. Assim, diante disso, nem é preciso entrar mais em detalhes sobre o que pensar sobre nosso modelo de gestão de clubes, federações, CBF. Mas daí o contraponto ser a modernidade mexicana, é necessário muito exercício de descaramento pra defender.
E aqui chegamos ao ponto do modelo do pobre México, tão longe de Deus…
Quem analisa o México como fruto do sucesso da modernidade dos clubes-empresa, omite propositalmente a quanto as coisas andam por lá.
Há alguns anos a Interpol criou uma divisão para investigar a lavagem de dinheiro pelo futebol. Também foi criada uma instituição para tal estudo, a Financial Action Task Force. As conclusões são assustadoras e dão a dimensão do problema: 168 de 312 clubes das três divisões estão no coração das zonas controladas pelo narcotráfico.
Querétaro de Ronaldinho Gaúcho foi um dos enrolados com denúncias de participação de narcotraficantesMuitos desses clubes estão na mão dos mais temidos narcotraficantes e alguns desses escondidos atrás de empresas que compraram clubes. Mudando de sede muitas vezes e lavando dinheiro. Assim como com transações e os negocios do futebol. Encontraram na paixão do esporte porto seguro para lavandería, como mostra o estudo “Lavagem de dinheiro através do setor de futebol” da citada Financial Action Task Force.
Recentemente, León, Querétaro, Irapuato e Necaxa estiveram enrolados com negócios do narcotráfico. Sim, o Querétaro que surgiu do nada para pagar milhões a Ronaldinho Gaúcho. Tanto dinheiro e ninguém sabe ao certo quanto fez o bon vivant largar sua mais do que doce vida no Rio de Janeiro para enfronhar-se nos confins do México. O Querétaro surgiu do nada certamente para quem ignora o que acontece no México e a realidade da “modernidade” dos clubes-empresa de lá.
A incrível reportagem de Tariq Panja no New York Times esta semana deu bem a dimensão do quanto o futebol mexicano anda enrolado nas coisas do narcotráfico. O símbolo Rafa Marquez não bebe nem da mesma água que o grupo tampouco treina com a mesma camisa do uniforme porque seu nome está na lista de apontados por suposta ligação com os narcos. E assim os patrocinadores americanos não querem associações.
Na terra de ninguém das segundas e terceiras divisões então os negócios se avolumam. No estudo da Financial Action Task Force é citada a história do time de terceira divisão que tinha sede em um grande estado e migrou para um mínimo povoado de trinta mil habitantes. Pagava milhões de salário sem entrar um níquel de receita. Uma história que se multiplica. Carteis como a Familia Michoacana, os Caballeros Templarios o Cártel Jalisco Nueva Generación são citados pelo envolvimento por tras da modernidade de alguns clubes-empresa.
Lavagem de dinheiro pelo futebol não é privilégio do México. E esse ponto é fundamental. O futebol vai se assemelhando cada dia mais a uma imensa lavaderia. Barões das oligarquias russas da cleptocracia das privatizações do petróleo e gás se instalaram na Premier League. Outros monarcas do petróleo bancam times em Paris e até Copa do Mundo. Sandro Rosell fez do impoluto Barcelona uma grande ponte com o Catar…O México é tema aqui em destaque apenas por causa do dedo de alguns querendo trapacear e louvar como modelo de organização porque são clubes-empresa. Que na verdade foram a grande raiz da entrada sem barreira dos narcos no futebol.
Por aqui o futebol já tem corruptos demais. E, pelo que alguns responsáveis por investigações indicam, já se lava dinheiro bastante. Alguns patrocínios, contratos, políticos metidos na história…E nem clubes-empresa temos como regra. Por isso, vale desconfiar de discursos da modernidade e das soluções de clubes-empresa que traem a própria tradição e essência da história das instituições por aquí. Se em países com forte controle dos órgãos de investigação a lavandería se instalou no futebol, imagine por aqui no dia em que esses modernos gestores puderem chamar um Flamengo ou um Corinthians de seus. Alguns passaram perto disso recentemente. Não foi muito bom. O sabão já tava a pleno vapor na lavandería dos nossos clubes por trás desse discurso.
Nossa Senhora de Guadalupe abençoe a seleção mexicana. O povo de lá merece fazer a terra tremer de novo e essa “alegria fugaz” mais alguma vez. Até porque nos clubes não foi possível essa benção e muitos já foram tomados por essa “modernidade” dos clubes-empresa.
Grande Lúcio, sempre lúcido!
Parabéns pelo site gostei muito. 😉