“Ação entre amigos”: Saquarema gastou R$ 8 milhões na compra do terreno de CT e entregou para CBV. Empreiteira abriu 5 offhores no período da obra

Começou como uma parceria. Com o tempo, mostrou-se uma ação entre amigos usando dinheiro público. Exatas duas décadas depois, esse casamento agora é chamado de “organização criminosa”. Um olhar sobre os vinte anos que marcam a relação entre Ary Graça, então presidente da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) e Antônio Peres Alves, prefeito de Saquarema na ocasião, é uma viagem de milhões em dinheiro público empregados, denúncias de fraudes e uma empreiteira vencedora de licitação que abriu 5 empresas offshores em período paralelo ao da obra do centro de treinamento na cidade, como mostram os documentos obtidos pela Agência Sportlight de Jornalismo através de Lei da Acesso à Informação junto a Caixa Econômica Federal (CEF) e a cartórios, além de consultas ao diário oficial de Saquarema. Para os cofres públicos, o Centro de Treinamento custou pelo menos R$ 25 milhões: R$ 8 milhões gastos pela prefeitura de Saquarema para comprar o terreno concedido para a CBV e mais R$ 17 milhões (ambos em valores atuais) da verba financiada pelo ministério do esporte para a construção e reforma.
Os próximos capítulos devem ter desdobramentos em várias frentes: esporte, política e polícia.
Tudo começou numa segunda-feira, agora perdida no tempo.
Mas o 13 de agosto de 2001 ainda pode ficar marcado na história do esporte brasileiro. Pelas portas dos fundos e nas páginas policiais.
Sem maior alarde e nenhuma nota no jornal, o então prefeito de Saquarema, Antonio Peres Alves, sancionou nessa data a lei 533/2001, que concedia, por tempo indeterminado, uma área de 93.174.40 metros quadrados (noventa e três mil, cento e setenta e quatro metros e quarenta centímetros) para a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV). Gratuitamente.
Era o início de um fio que começa a ser puxado. E de uma parceria, agora chamada de “organização criminosa” em investigação da polícia civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro que resultou na “Operação Desmico”, no último dia 20.
A denúncia que fundamentou a operação fala que a “organização criminosa” começou a agir “em período inicial não determinado, porém até 2017”. E que os denunciados “em comunhão de ações e desígnios entre si, associaram-se e mantiveram-se associados, integrando todos uma organização criminosa voltada para o fim de praticar, reiteradamente ou não, delitos contra o patrimônio e falsificações diversas, bem como crimes de lavagem de dinheiro…”.
No entanto, analisando-se registros públicos obtidos em cartórios, lei de acesso à informação e diários oficiais, é possível determinar esse 13 de agosto de 2001 como o marco inicial dessas duas décadas de parceria. No topo dessa “parceria”, estão Ary Graça, então presidente da CBV e atual presidente da FIVB, e o prefeito de Saquarema à época, Antonio Peres Alves. O deputado Paulo Melo, que viria a ser preso na “Operação Cadeia Velha” por ser parte do esquema de Sérgio Cabral e Jorge Picciani, é uma outra face dessa parceria, agindo nos bastidores.
O começo de tudo foi essa lei concedendo a área gigantesca e privilegiada, de frente para o mar. A partir desse pontapé inicial, é possível se estabelecer os parceiros desse ato, conexões, desdobramentos da lei, beneficiados, quais foram os atos dos beneficiados, as licitações que se seguiram e o custo para os cofres públicos de todas essas ações.
Para se ter a real dimensão do que representava a lei do 13 de agosto de 2001, é preciso recuar até 2 de setembro de 1997, quando o então prefeito de Saquarema, Carlos Campos da Silveira, à época correligionário de Paulo Melo, sancionou lei antecipando créditos no valor de R$ 1.200, 000,00 (um milhão e duzentos mil reais), atuais R$ 8.460.499,44 (oito milhões, quatrocentos e sessenta mil, quatrocentos e noventa e nove reais, e quarenta e quatro centavos) pelo IGPM, para que a prefeitura pudesse comprar o terreno então de posse da Fundação de Seguridade Social Braslight. O atual terreno da CBV.

Em 19 de janeiro de 1998, a compra foi realizada e registrada no cartório de Saquarema.

Em 2000, Antonio Peres foi eleito prefeito. Pelo PSDB mas com amplo apoio do grupo do deputado estadual Paulo Melo (PMDB),o citado cacique influente na região.
No ano seguinte, no 13 de agosto, Antonio Peres assinava a lei 533/2001.


Ou seja, muito pouco tempo depois do município arcar com uma despesa de mais de R$ 8 milhões para compra do terreno, Peres concedia esse mesmo terreno para a CBV sem cobrar um tostão. Ficando os R$ 8 milhões na conta do contribuinte. R$ 8 milhões dos cofres públicos doados. E não estavam sós, logo se verá. Outros registros de “doação” do prefeito com a coisa pública para parceiros viriam logo depois. O terreno da CBV apenas inaugurava o “modus operandi” de uma modalidade criminosa de gestão pública através de concessões de espaços da municipalidade, como viria a ser qualificada numa CPI.
Em 3 de setembro, menos de um mês depois da assinatura da Lei 533/2001, a prefeitura e a CBV assinaram o acordo de concessão e já no dia 10 de outubro é feito o lançamento do projeto do centro de treinamento.
No dia do lançamento em Saquarema, o deputado Paulo Melo assumiu o protagonismo das negociações e articulações entre Ary Graça e o prefeito Antônio Peres Alves para a concessão do terreno da prefeitura para a CBV: “Nós decidimos ceder o espaço para o vôlei porque acreditamos que a cidade será beneficiada. Com certeza, vamos conseguir mais turistas e empregos com o centro de treinamento”, disse o então deputado estadual do PMDB em entrevista para a Folha de São Paulo.
Boa parte dos bens declarados pelo então deputado Paulo Melo estão em propriedades em Saquarema. E a evolução patrimonial impressiona quando confrontados com os anos de vida pública.
Em declaração de renda disponível no Tribunal Superior Eleitoral, está que em 1997 era dono de patrimônio de R$ 772.902,2620. Que pula para R$1.275.527,5421 em 2001, vai a R$1.569.355,272 em 2006, alcança R$ 3.400.996,75 em 2010 e chega a R$ 5.020.321,24 em 2014, último ano em que constam suas declarações, antes de ser preso.


No dia 7 de dezembro, é liberada a primeira parte da verba da Caixa Econômica Federal, oriunda do Ministério do Esporte, para cumprimento do contrato 0123.562-80, que garantiu R$ 3.600.000,00 para o projeto, atuais R$ 17.107.263,36, corrigidos pelo IGPM.
Nos dias 21 e 23 de janeiro, a CBV anuncia os vencedores da licitação para a realização da obra de Saquarema, dividida em duas partes: a Nuceng Engenharia e Construções ficou com a maior parte da obra, referente a primeira etapa e a OAC Construções com a outra.

A primeira fase, vencida pela Nuceng e a mais cara, foi para construção de quatro quadras cobertas, sala de musculação e fisioterapia. E a segunda, menor, era a reforma dos alojamentos já existentes da Fundação Braslight, que ficou para a OAC.

Embora inaugurado em 25 de agosto de 2003 com pompas e presença do ministro do esporte e cobertura de toda a imprensa, e tenha sido liberado para treinamento (a preparação das seleções para as Olimpíadas de Atenas no ano seguinte já foram em Saquarema), as obras só viriam a ser finalizadas, de acordo com os documentos da Caixa Econômica, em 2005. E a prestação de contas final da CBV oficializada no Sistema Integrado de Administração Financeira (SIAFI) em 4 de dezembro de 2006.
Nesse tempo enquanto durou a obra, as relações entre a Nuceng, a prefeitura de Saquarema e o vôlei brasileiro se estreitaram. A empreiteira virou patrocinadora de uma equipe na superliga de 2001/2002 e 2002/2003, o Macaé, na região, e cuja prefeitura também era área de influência do deputado Paulo Melo.

A empreiteira realizou ainda diversas obras na cidade de Saquarema, como o fórum e centros médicos, assim como em Macaé.
Em 2003, os sócios da Nuceng, Lelis Vilardi e Antônio dos Santos Lopes, deram início a uma sequência de abertura de empresas offshores em paraísos fiscais que correram paralela ao período da obra, embora não necessariamente se possa relacionar diretamente um e outro fato. Ter uma empresa offshore não é ilegal desde que declarada, mas os especialistas na área, os órgãos de investigação e o consenso da literatura acerca do tema consideram que na maioria dos casos utiliza-se esse expediente para evasão fiscal, lavar dinheiro ou para “proteger” os proprietários, muitas vezes por obtenção ilegal do patrimônio no país de origem.
No dia 13 de fevereiro, os proprietários da Nuceng abriram a Fort Rose, em Montevideu, Uruguai. O endereço, Calle Juncal, 1.327/2.201 ficou famoso na história contemporânea do Brasil porque lá foi negociado um documento que buscava legitimar um suposto empréstimo ao então presidente Collor, numa tentativa de salvar seu mandato do impeachment, no que ficou conhecido como “Operação Uruguai”, que naufragou junto com a presidência.
Posteriormente a Fort Rose, os sócios da Nuceng abriram mais quatro offshores no Panamá, cujos documentos foram obtidos pela reportagem na junta comercial local.
Em 2/2/2005 foi aberta a Gap Provance.

No mesmo dia 2/2/2005 abriram a Puget Corporation.
Em 18/5/2006 foi a vez da Bissor Overseas.
E no dia seguinte, 19/5/2006, abriram a Manthar Overseas.
Enquanto isso, Antônio Peres Alves seguia seu mandato de prefeito distribuindo pedaços de Saquarema. Fazendo concessões de terrenos públicos como quem faz um decreto para dar uma medalha. Logo depois de conceder o terreno da CBV em agosto de 2001, assinou a Lei 549, no dia 12 de setembro, doando terrenos ao estado do Rio. E no apagar das luzes do ano, perdido num diário oficial natalino, promulgou a Lei 572/2001, que autorizava a concessão de imóveis do patrimônio municipal para construção de hoteis e pousadas.
A devoção e afeição do prefeito, reeleito em 2004 tendo como vice Franciane Melo (depois eleita prefeita em 2008 e 2012), casada com o deputado Paulo Melo, em doar terras do município para entes privados, inaugurado com o terreno da CBV, não acabou bem.
Em abril de 2015 uma CPI foi instaurada na câmara municipal de Saquarema tendo como objeto investigar as doações de terreno realizadas por Antônio Peres Alves durante seus mandatos como prefeito de Saquarema.
Em 29 de outubro de 2015 foi entregue o relatório final da CPI. As conclusões sobre as razões de Antônio Peres Alves para realizar tais doações foram devastadoras.
“Utilizou-se da doação de terrenos de forma irregular para obter vantagem ilícita”, afirmando ainda que “tinha como objetivo conseguir a reeleição, bem como a manutenção de toda a família e amigos no poder”.
Ao final, a CPI resultou num processo de 6 mil páginas em 22 volumes, onde afirma ainda que “os terrenos eram doados somente aos que interessavam, não importando se os mesmos se enquadravam ou não nos requisitos exigidos pela lei”.
Sobre a prática do prefeito em concessões e doações de terrenos públicos, o relatório concluiu ainda que “ficou claro, inquestionável e sem qualquer sombra de dúvidas que uma infinidade de contratos de concessão de uso foram outorgados de forma irregular, sem qualquer procedimento administrativo, sem conhecimento de servidores que faziam a fiscalização dos mesmos, bem como agindo os autores em clara formação de quadrilha para a prática reiterada de crimes”. E por fim, afirmou que “foi fartamente demonstrável que há dano ao erário, na outorga de títulos de concessão de uso de imóveis de patrimônio municipal de forma irregular”. As conclusões da CPI não impediram que Manoela Peres, casada com Antonio Peres, fosse eleita prefeita no ano seguinte, 2016, e reeleita em 2020, sendo a atual mandatária de Saquarema.
Desde o ano de 2014, a série de reportagens “Dossiê Vôlei” mostrou uma série de irregularidades nas gestões de Ary Graça. Entre outras descobertas, estavam contratos milionários para empresas de pessoas próximas sem comprovação da prestação de serviços. As investigações posteriores de órgãos de controle atestaram o que estava na reportagem: os recursos de patrocínio do Banco do Brasil iam para empresas recém-criadas e de pessoas ligadas ao então presidente da CBV. A atual investigação do MPRJ e polícia civil qualificou como “esquema criminoso”, em favor do próprio Ary Graça.
A Controladoria Geral da União (CGU) atestou o teor das reportagens após longa investigação. Não apenas atestou como aprofundou, demonstrando a correção e efetividade da série. Mesmo diante do relatório da CGU e a inequívoca exibição comprobatória documentada dos fatos pela CGU, alguns membros da comunidade do vôlei seguiram afirmando que as apurações da reportagem “não se comprovaram”. Como o técnico José Roberto Guimarães, que a cada entrevista repete o mesmo discurso em proteção ao atual presidente da FIVB, Ary Graça.
OUTRO LADO:
Ary Graça – Através da assessoria de imprensa, o presidente da FIVB, Ary Graça, negou ter conhecimento sobre os fatos mencionados na reportagem em relação as ações do prefeito e da empreiteira.
Nuceng – A reportagem não obteve contato com a construtora. Eventual resposta será acrescentada aqui.
Antônio Alves Peres – o ex-prefeito não foi encontrado para responder. Eventual resposta será acrescentada aqui.