PLATA, PLOMO E FUTEBOL: A HISTÓRIA NÃO CONTADA DE DON ALEJANDRO E DA CONMEBOL

O primeiro registro policial foi precoce.
Alejandro Guillermo Dominguez Wilson Smith tinha 13 anos quando a Polícia Federal (PF) brasileira escreveu seu nome no confidencial “Informe 576”. Na ficha, além da foto do menino, está dito que ele foi um dos paraguaios a obter vistos permanentes para o Brasil com dados falsos. A solicitação do pai, Osvaldo Dominguez Dibb, o “ODD”, continha endereços forjados de residência em Foz do Iguaçu. Daquele 21 de maio de 1985 em diante, o prontuário nunca mais parou de engordar. O dele e o da família, juntos também por relações societárias.

Assim como o histórico de denúncias na justiça: contrabando de cigarros, lavagem de dinheiro, crimes contra o sistema financeiro, formação de quadrilha, grilagem de terra. E uma profunda e intima ligação com um dos maiores criminosos do século XX: o general Alfredo Stroessener, o ditador paraguaio que ficou 34 anos no poder, entre 4 de maio de 1954 e 3 de fevereiro de 1989. Unidos por laços empresariais e políticos. E familiares, desde quando Humberto, irmão de Osvaldo e tio de Alejandro, se casou com a filha do general, Graciela, e os Dominguez e os Stroessner passaram a ter um tronco Dominguez Stroessner. Uma ligação que estende suas fronteiras para o Brasil, onde Alejandro Dominguez e seus primos Stroessner possuem sociedade.
O menino com anotação prematura na folha policial há exatos 40 anos virou Alejandro Dominguez, o todo-poderoso do futebol no hemisfério sul, presidente da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) desde 2016. Agora com 53 anos e um percurso marcado por coincidências, como uma empresa aberta em paraíso fiscal exatamente 45 dias depois de assinar o controverso contrato por direitos de transmissão da seleção paraguaia para Copa de 2018.
O presidente da Conmebol é, junto com mais 5 irmãos, herdeiro em uma fortuna estimada em mais de US$ 500 milhões. Inteiramente construída por “ODD”, à sombra de benesses na era Stroessner. Os Dominguez Dibb foram protagonistas na chamada “elite stronista”, os três principais grupos que sustentavam o poder do ditador: famílias próximas aos Stroessner, empresários do Partido Colorado e ainda militares e funcionários do alto escalão governamental. Os Dominguez Dibb se enquadravam nos dois primeiros grupos aqui citados.
Beneficiário direto dos 34 anos de horror. De uma das mais sanguinárias ditaduras da história. Nesse período, foram 19.862 presos, 18.772 torturadas, 20.814 exilados, 236 menores privados de liberdade e 17 crianças nascidas na prisão. Com 459 desaparecidos. Um total de 128.076 vítimas diretas e indiretas, de acordo com os números da Comissão da Verdade e Justiça do Paraguai.
Esses números e relatos não dão conta de todo horror.
De acordo com o Departamento de Memória Histórica e Reparação do Ministério da Justiça paraguaio, Stroessner estuprava em média quatro meninas entre 10 e 15 anos por mês. Um pedófilo em série, que, ao longo dos 34 anos no poder, teria estuprado 1.600 crianças. Meninas ainda na infância, sequestradas por militares na área rural e enviadas ao general.
Julia Ozorio Gamecho foi uma dessas meninas. Levada ao ditador aos 13 anos, depois de retirada à força da casa dos pais. Perdeu a virgindade estuprada por Stroessner e então foi “ofertada” por ele ao coronel Miers, de quem foi escrava sexual até os 15 anos, quando então essas crianças eram consideradas velhas pelos militares. Sobreviveu para contar. Enfrentando seus fantasmas, escreveu o pungente relato da barbárie “Uma rosa e mil soldados”, onde descreve a barbárie. Sobre homens que “saciavam sua luxúria sem limites com sede de possuir aos despossuídos”, conta. “As bestas carniceiras”, resume.
Os herdeiros e beneficiários dessas trevas ainda estão entre nós. Em todas as áreas. Nos gabinetes, parlamentos, no mundo corporativo, nas telas. E nos estádios.
PARTÍCIPES DO HORROR
Farta documentação, em diferentes fontes públicas, mostra que os Dominguez Dibb foram muito além de beneficiários da ditadura, se locupletando como amigos e familiares do rei. Mais do que cúmplices e entusiastas. Foram partícipes da barbárie.
Entre os documentos, está o que se chamou de “Arquivos do Terror”, encontrados em uma delegacia de Assunção em 1992. Milhares de registros que possibilitaram a comprovação definitiva da “Operação Condor. Incluindo o relato sádico e cruel relato do desaparecimento do médico Agustín Goiburú, opositor de Stroessner. Preso em 1970, conseguiu fugir e refugiar-se na embaixada chilena da capital paraguaia. Durante o refúgio de dez dias, Humberto Dominguez Dibb, o citado genro do ditador, tio e sócio de Alejandro Dominguez, foi para a calçada em frente a janela da embaixada, de onde insuflava populares e dirigia gritos para que o médico se entregasse, além de xingamentos. Beneficiado por um salvo-conduto do chileno Salvador Allende, Goiburú foi para o Chile. Em 1977, trabalhando na cidade argentina de Entre Rios, foi sequestrado em uma missão conjunta da Condor que juntava agentes paraguaios e argentinos, e nunca mais apareceu. A Corte Interamericana de justiça condenou o estado paraguaio a pagamento de indenização aos familiares.
ALÉM DA BARBÁRIE, CORRUPÇÃO FOI A OUTRA GRANDE MARCA DA DITADURA STROESSNER
“A corrupção é o preço que se paga pela paz.” A famosa frase do ditador paraguaio teve como símbolo maior a Usina Hidrelétrica de Itaipu. O acordo binacional Brasil/Paraguai foi assinado em junho de 1966 entre os militares que governavam os dois países.
O primeiro projeto da usina, o “Sete Quedas”, foi lançado ainda no governo civil de João Goulart, derrubado pelo golpe de 1964 que iniciou a ditadura no Brasil. Orçado em 1,3 bilhão de dólares. Projeto substituído pelo governo militar por outro de 13 bilhões de dólares, sendo que o preço final ficou em estimados 30 bilhões de dólares.
O superfaturamento foi esmiuçado por um militar. Em 1996, o coronel Alberto Carlos Costa Fortunato escreveu “A direita explosiva no Brasil”, onde detalha por onde escoou o dinheiro público dos dois países: “Conhecem a história sobre o aumento de 23% no custo de Itaipu? Pois o negócio foi o seguinte: lá pelas tantas, o governo paraguaio pretendeu (mais adequado seria dizer que condicionou) um aumento de 23%. Os representantes brasileiros articularam um conchavo e combinaram o seguinte: vocês topam aumentar em 46% (metade para cada um)”? De acordo com o autor, assim foi feito.
Os Dominguez também são parte desta história. Desde os conchavos de lançamento até a influência em cargos estratégicos.
O Jornal do Brasil, edição de 25 de abril de 1973, conta que, por ocasião do lançamento de Itaipu, a comitiva de 90 integrantes do general Stroessner que estava em Brasília para firmar a construção da usina espalhou-se pelo Hotel Nacional. O nono andar ficou reservado para a cúpula da delegação: o general, o filho, primeiro-tenente Gustavo Adolfo Stroessner, a filha Graciela Stroessner e o genro do ditador, Humberto Dominguez Dibb, o tio e sócio de Alejandro Dominguez.
Nomeações para a empresa mostram essa influência. Como a de Gerardo Soria Dávalos, um secretário de Osvaldo Dominguez Dibb que chegou a chefe do gabinete paraguaio de Itaipu em 2014. Em 2022, o faz tudo dos Dominguez Dibb sofreu uma acusação de assédio moral e sexual, quando ocupava o cargo de Diretor de Responsabilidade Social na hidrelétrica. Episódio posteriormente arquivado.
“ODD”: PEDIDO DE VISTO COM DADOS FALSOS AO FIM DA DITADURA STROESSNER POR MEDO DE PUNIÇÕES
Tomado por ditaduras militares desde a década de 60, sufocado pela “Operação Condor”, os ventos do continente começaram a mudar de direção em meados dos anos 80.
Na Argentina, o regime militar tinha acabado em 1983. No Brasil, o último general se sustentava no poder, de onde sairia em 1985, assim como no Uruguai. No Chile, o general Pinochet iria até 1990. É nesse contexto de provável mudança no cenário político que, em 1984, o patriarca dos Dominguez pede os vistos permanentes brasileiros para toda família. Uma precaução e salvaguarda depois de décadas de relação umbilical, sanguínea e de negócios entre os Dominguez e os Stroessner, como está no próprio relatório da PF:
“Referidos paraguaios são ligados direta ou indiretamente aos detentores do poder no governo do seu País. O propósito das artimanhas por eles praticadas para obterem permanência no Brasil, visa prevenirem-se contra possível mudança política no Paraguai”.

As “artimanhas” citadas no processo: a criação de empresas fictícias no Brasil, com intuito de provar vínculos já existentes, viabilizando a permissão. Essas empresas se extinguiram logo após a concessão dos vistos.
Entre as empresas criadas, está a Iguamóveis S.A. De acordo com os dados da Receita Federal, a abertura, em Foz do Iguaçu, foi no dia 23 de fevereiro de 1984, sendo baixada em 23 de outubro de 1985.
“Aquela firma nunca funcionou. Foi criada com o fim de viabilizar a obtenção de permanência definitiva no Brasil para a esposa, filhos, netos e alguns amigos de Júlio Dominguez, tendo sido extinta definitivamente após a realização daqueles objetivos”, diz o documento.
Na ocasião, em depoimento a PF sobre o caso, corroborando a conhecida colaboração entre ditaduras e seus beneficiários, o despachante e contador responsável por abrir as empresas, Luiz Aires, “insinuou que citados elementos possuem ótimo relacionamento nos altos escalões do governo brasileiro e que houve tráfico de influência no processo de concessão da permanência definitiva no Brasil aos nomeados”.
MUITO MAIS DO QUE UM HERDEIRO: PRESIDENTE DA CONMEBOL É SÓCIO DOS STROESSNER E BENEFICIÁRIO DA DITADURA NOS NEGÓCIOS
A participação de Alejandro Dominguez em toda engrenagem de fortuna e poder, vai muito além do parentesco. Assumiu parte dos empreendimentos do pai ainda cedo, como o conglomerado de jornal e rádios “Grupo Nación de Comunicaciones (GNC”), onde ocupou a presidência de 1999 a 2014. O império dos Dominguez passa por hoteis, imobiliárias, gastronomia, fábrica de cigarros, cassinos, exploração de jogo, terras e empresas ligadas ao agro.
O Brasil também reúne os Dominguez e os Stroessner nos negócios. Como na imobiliária Dominguez Dibb & Cia, aberta por “ODD” em Foz do Iguaçu, 1982, e ainda ativa, onde Alejandro está através da holding “Muharde Administradora de Bens”, sócio também de Humberto Dominguez e Alfredo Gustavo Domínguez Stroessner, o “Goli”, primo de Alejandro, filho de Humberto e neto do ditador.
Uma comunicação datada de 10 de janeiro de 2010 entre a embaixada americana em Assunção e o Departamento de Estado, vazada no Wikileaks, traça um perfil do herdeiro de Osvaldo Dominguez Dibb: “seu filho, Alejandro Dominguez Wilson-Smith, que estudou nos EUA, é o diretor do Grupo La Nacion, que inclui dois jornais diários: La Nacion e Cronica, rádio 970 AM e várias estações de FM. Tanto pai quanto filho tem laços com a família Stroessner”. Cita ainda as extensas propriedades imobiliárias da família.
POLÍCIA GRAVOU GARANTIA DE “ODD” SOBRE CIGARRO CONTRABANDEADO PELOS DOMINGUEZ: “TODA A PRODUÇÃO TEM O MESMO PADRÃO DE QUALIDADE”
É do ramo da fábrica de cigarros que brotaram os maiores escândalos da família. Aqui novamente o presidente da Conmebol é muito mais do que somente um herdeiro: Alejandro Dominguez é sócio da Tabacalera Boqueron. Acionista e nome no registro da empresa, já estava como sócio quando, nos anos 90, começaram a explodir as acusações de contrabando de cigarro da empresa. Escândalos detalhados em comissões parlamentares de inquérito e processos judiciais em diferentes países, investigação policiais e do ministério público.
Uma modesta apreensão de 87 caixas de cigarro contrabandeados do Paraguai para São Paulo, em 1997, foi o ponto de partida para uma investigação do Ministério Público Federal-SP, que desembocou em denúncia oferecida e aceita em 2001 na justiça de São Paulo, tendo tramitado na 6º Vara Criminal.
O MPF-SP traçou com detalhes a ação e o papel da Tabacalera Boquerón, a sociedade de “ODD” e do filho Alejandro Dominguez no que chamaram de “organização criminosa” que comandava a engrenagem do contrabando de cigarros entre Brasil e Paraguai.
O empreendimento criminoso, segundo a peça, apresentava “uma divisão funcional de atividades e conexões locais, nacionais e internacionais”. É nesse braço de atividades e conexões internacionais que entrava a unidade dos Dominguez, de acordo com o MPF-SP. “Assim é que os cigarros, de marcas próprias ou contrafações de marcas nacionais, produzidos nas fábricas de Roberto Eleutério ou na Tabacalera Boquerón, de propriedade do cidadão paraguaio Osvaldo Dominguez Dibb, eram contrabandeados do Paraguai”.
A monitoração telefônica de “ODD” por parte da investigação também permitiu desenhar com maiores detalhes os tentáculos da Tabacalera Boquerón no esquema. “É de se observar que a marca Derby, de titularidade da empresa Souza Cruz, conforme diálogos mantidos entre integrantes da organização no Brasil e os fornecedores paraguaios, entre eles Osvaldo Dominguez Dibb, é uma das mais falsificadas e contrabandeadas, muitas vezes sendo identificada, durante a transação comercial, com o código “418”.
As apreensões geraram provas: “os cigarros apreendidos apresentam em muitas de suas caixas, conforme se pode observar em vista realizada pelo MPF ao depósito da Receita Federal, rótulos indicando que foram produzidos pela Tabacalera Boquerón, sediada no Paraguai e de propriedade de Osvaldo Dominguez Dibb”. Denunciado por associação criminosa, contrabando, falsificação de estampilhas (selos) e crime contra a saúde pública, o processo por fim foi arquivado.
Em 2003, a câmara dos deputados instaurou em Brasília uma Comissão Parlamentar de Inquérito, a “CPI da Pirataria”. “ODD” e a Tabacalera Boquerón ocupam um capítulo inteiro do relatório final, apontado como “um dos principais falsificadores de cigarros do Paraguai”.
O modus operandi dos donos da Tabacalera Boquerón no esquema também está esmiuçado no relatório da CPI:
“Utiliza um avião do tipo Bell/90, série LA 46, registro ZP-TZE, em nome de sua filha, para a prática do contrabando ou descaminho. As pistas utilizadas são as do Aeroporto Guarani, de Ciudaddel Este, e uma em La Fortuna…Suas fábricas produzem pelo menos 13 marcas de cigarros de peso no mercado brasileiro: Belmont, Campeão, Derby, Indy, LS, Minister, Mistura Fina, Mustang, Oscar, Plaza, Ritz, US e Vanguard. Todas falsificadas.”
As escutas em cima de “ODD” captaram ainda a garantia de qualidade dos produtos da Tabacalera Boquerón dada aos parceiros por “ODD”: “Podem ficar tranquilos porque toda a produção tem o mesmo padrão de qualidade”.
A transformação de um país em negócio privado da família Stroessner e de seus parceiros alimentou os Dominguez em diferentes fronts. E gerou a fortuna do conglomerado Dominguez Dibb. Em fevereiro de 1969, Humberto Dominguez inaugurou, ao lado do sogro, sua fábrica de arames, a ICIERSA. Stroessner já tinha deixado o caminho livre para eliminar qualquer chance de insucesso dois meses antes, quando, no 31 de dezembro, publicou decreto proibindo a importação de alguns itens, entre eles o arame. Em 1975, o genro inaugurou ao lado do general a fábrica de pilhas “Paraguayas”. Noventa dias depois, decretou a proibição de importação de pilhas. De decreto em decreto do general, de monopólio em monopólio, os Dibb foram amealhando a fortuna da família.
PLATA Y PLOMO: “MATADOR COM UMA ESCOPETA AMEAÇANDO CRIANÇAS E MULHERES”
O roubo de terras por parte do que a Comissão de Verdade e Justiça do Paraguai chamou de “famílias próximas a ditadura Stroessner” foi uma das maiores marcas do período. De acordo com a comissão, 3.336 famílias ou grupos empresariais com alguma relação ao ditador, se apropriaram de 8 milhões de hectares de “terras mal habidas”.
O relatório “Los dueños de la tierra en Paraguay”, publicado pela organização internacional Oxford Committe for Famine Relief (OXFAM) em 2016, estima que o “Grupo Domínguez Dibb” acumulou 52 mil hectares no período, concentrados principalmente na Estancia La Gringa, de 35 mil hectares, em San Pedro, e na Estancia Loma Verde, em Presidente Hayes, com 17 mil hectares.
O caso mais conhecido de terras do “Grupo Dominguez Dibb” apontadas como apropriadas ilegalmente é o da Estância Loma Verde, onde está a “Agroganadera Loma Verde”, da família.
Ali estão as terras da comunidade indígena Yakye Axa, que tiveram seu território gradualmente sendo tomado por fazendeiros ao longo do século XX, processo acelerado no período Stroessner.
Em 13 de julho de 2005, a CIDH sentenciou que o estado paraguaio deveria identificar o território tradicional e ancestral dos membros da Comunidade Indígena Yakye Axa, em posse dos Dominguez Dibb e entregá-los de maneira gratuita. Isso nunca ocorreu.
Expulsa de sua terra, a comunidade indígena vive até hoje à margem da estrada, onde é frequente o falecimento de crianças Yakye Axa por causa de acidentes na rodovia. No documento da CDIH de 2012, publicado pelo ministério da justiça do Brasil, o relato de uma testemunha cita a presença de um “matador” na propriedade dos Dominguez Dibb:
“Na Estancia Loma Verde foi colocada uma pessoa como o matador do lugar, que costuma percorrer o alambrado com uma escopeta ameaçando as crianças e as mulheres, porque tem a ordem de não deixar as pessoas entrarem para retirar lenha nem água. A testemunha é a única que pode se aproximar do senhor quando é necessário que se esclareça algo, de modo que também recebeu ameaças.” Por fim, contam que “as crianças não possuem alimentação, às vezes não possuem nada para comer durante o dia. Há muitas dificuldades para a prática de caça, já que estão proibidos de entrar na estância”.
FUTEBOL: EM BUSCA DA POPULARIDADE E SEMPRE NA ROTA DOS ESCÂNDALOS
Poderosos, impunes, milionários e amigos do rei. Os donos do Paraguai.
Faltava apenas um ingrediente aos Dominguez Dibb: o respaldo popular.
Percorreram o caminho mais fácil, indo ao encontro de onde muitas vezes se busca esse ingrediente: o futebol.
Em 1976, ainda na ditadura Stroessner, “ODD” assumiu a presidência do Olímpia. Em 1979, o clube conquistou a Libertadores e o Mundial Interclubes.
Estabeleceram uma dinastia e um feudo no Olímpia, com Humberto nos bastidores e Alejandro no conselho de administração entre 1995 e 1996, e a vice-presidência entre 2004 e 2006. Neste ano, Alejandro Dominguez passou a vice-presidência da Associação Paraguaia de Futebol (APF), com o “ODD” mantendo-se influente até a morte, em 2024. Em 2014, Juan Angel Napout, então o presidente da APF, assumiu a titularidade da Conmebol e Alejandro chegou número 1 da APF.
Em dezembro de 2015, quando explodiu o Fifagate, maior caso de corrupção da história do esporte, Napout foi preso na Suíça. De acordo com a acusação apresentada por Loretta Lynch, então Procuradora-Geral dos Estados Unidos, Napout, em 2013, ainda na presidência da APF, teria recebido US$ 7,5 milhões da Datisa, empresa que comercializava os direitos de televisão pela exclusividade da Copa América. Alejandro Dominguez era seu vice no período, mas não foi acusado. Com a queda de Napout da Conmebol, em janeiro de 2016, Alejandro Dominguez foi aclamado novo presidente da Conmebol, onde está até hoje.
OPÇÃO POR CONTRATO COM “PARCEIROS” ASSINADO POR ALEJANDRO DOMINGUEZ GEROU PERDA DE US$ 7,6 MILHÕES
Em 2021, com Alejandro Dominguez já na presidência da Conmebol, veio à tona o episódio do contrato assinado por ele quando ainda estava na Associação Paraguaia de Futebol.
De acordo com as denúncias, Alejandro, então mandatário da APF, teria assinado, em 5 de maio de 2015, um contrato com a empresa Ciffart Sport, no valor de US$ 9.380 milhões, cedendo os direitos de transmissão dos jogos do Paraguai nas eliminatórias da Copa da Rússia 2018. A Ciffart seria intermediária da Full Play para pagamento de subornos.
Ocorre que, exatos 11 dias antes, em 24 de abril, Alejandro Dominguez teria tido uma oferta e um contrato na mão, que acabou vindo a público, no valor de US$ 17 milhões com a Tenfield pelos mesmos direitos. Ou seja: teria optado por uma perda de US$ US$ 7,62 milhões (sete milhões, seiscentos e vinte mil dólares). Em novembro de 2021, numa corte de Assunção, Alejandro Dominguez se recusou a responder sobre o caso. Em 2023, o episódio foi alvo de investigação do Comitê de Ética da Fifa, onde Alejandro Dominguez ocupa uma vice-presidência desde 2018. A investigação não foi adiante. O escândalo não o impediu de ser também, desde 2017, o presidente da Comissão de Finanças da Fifa.
ALEJANDRO DOMINGUEZ ABRIU EMPRESAS EM PARAÍSO FISCAL LOGO DEPOIS DE ASSINAR O CONTRATO DA APF POR ELIMINATÓRIAS DE 2018
Refazendo o caminho e as pegadas desse episódio e desse contrato, a reportagem descobriu uma nova coincidência de datas muito próximas:
No dia 19 de junho de 2015, exatos 45 dias depois de assinar com a Ciffart o contrato com valor muito menor do que a oferta que recebera da Tenfield, o registro público de empresas do Panamá tem a abertura da “Spark Bay S.A.”, cujo objeto é de investimentos e gestão de ativos diversos.

Alejandro Guillermo Dominguez Wilson Smith assina como presidente da empresa.
Maria Mercedez Perez Dominguez, casada com Alejandro Dominguez, está como secretária. Ambos constando no mesmo endereço em Assunção.
Montserrat Jimenez Granada aparece como tesoureira.

Montserrat Jimenez Granada não é apenas sócia de Alejandro Dominguez em uma empresa privada em paraíso fiscal. A advogada é a Diretora Jurídica e Secretária Geral Adjunta da Conmebol desde a chegada de seu sócio na Spark Bay à presidência da entidade máxima do futebol sul-americano. E já acompanhava o dirigente na Associação Paraguaia de Futebol desde a entrada dele como presidente, em 2014, só saindo para acompanhá-lo na Conmebol.
Na empresa panamenha, a diretora da Conmebol forneceu como endereço o escritório de advocacia Jiménez Balbiani & Asociados, do qual é parte, com seu irmão, Julio Jimenez, vice-presidente do Olímpia e intimamente ligado a Alejandro Dominguez: calle Jejuy 290 esquina Oleary.
Alejandro Dominguez e Montserrat Jimenez seguem juntos na Conmebol e na empresa privada. O Panamá está na lista de paraísos fiscais de entidades como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e União Europeia, e é conhecido por práticas de sigilo financeiro e baixa tributação, que facilitam a evasão fiscal e a lavagem de dinheiro. A abertura da “Spark Bay”, em 2015 no país é, portanto, anterior ao Panamá Papers, escândalo de 2016, a partir do qual outros países se tornaram mais procurados para tais transações
CRONOLOGIA
– 24 DE ABRIL DE 2015: ALEJANDRO DOMINGUEZ RECEBE OFERTA DE US$ 17 MILHÕES DA TENFIELD POR DIREITOS DE ELIMINATÓRIA DE COPA DE 2018
– 5 DE MAIO DE 2015: ALEJANDRO DOMINGUEZ ASSINA CONTRATO COM O A CIFFART POR US$ 9,38 MILHÕES
– 19 DE JUNHO DE 2015: ALEJANDRO DOMINGUEZ ABRE A EMPRESA “SPARK BAY” NO PARAÍSO FISCAL DO PANAMÁ JUNTO COM A SECRETÁRIA DA CONMEBOL
NOVOS NEGÓCIOS, VELHAS SOMBRAS: UM CONTRATO MILIONÁRIO DE PETRÓLEO E MUITAS DÚVIDAS
O negócio da vez dos Dominguez cruza as fronteiras e envolve milhões.
No dia 30 de setembro de 2024, a Petroleos Paraguayos (Petropar) e Doha Holding Group assinaram um contrato no valor de US$ 61 milhões.
Com previsão de entrega de 100.000 toneladas métricas de combustível por um preço significativamente menor do que o que a Petropar normalmente paga. Com preço do diesel fixado em US$ 610 por tonelada, o que é bem abaixo do praticado no cenário mundial, em que o preço médio internacional do diesel em 2023/2024 variou entre US$ 700 e US$ 900 por tonelada. A entrega do combustível deveria ter sido entre outubro e novembro do ano passado, mas em março último as empresas assinaram a quinta prorrogação de prazos.
PANAMÁ, DOHA, ASSUNÇÃO E A MESMA ESQUINA: TODOS OS CAMINHOS LEVAM A ALEJANDRO DOMINGUEZ
Sem qualquer tradição ou registro público de transação no mercado de combustível e histórico comprovado, a Doha Holding contou com um trunfo para obter o contrato com a Petropar: quem assina como um dos representantes da empresa é Alejandro Facundo Dominguez Pérez. O filho do dirigente máximo do futebol continental. É a terceira geração dos Dominguez envolvida em negócios controversos.
O herdeiro de Alejandro Dominguez como representante de uma empresa estrangeira em uma transação milionária no ramo do petróleo chama atenção também, já que cerca de um ano antes, mais exatamente no dia 13 de maio de 2023, estava se formando em jornalismo na William Allen White School of Journalism and Mass Communications, da Universidade do Kansas, Estados Unidos. Pouco tempo depois, estava assinando contrato milionário em área totalmente distinta da formação no ano anterior.
Além do filho, todos os caminhos da Doha Holding tangenciam o presidente da Conmebol. Como o endereço em Assunção fornecido pela empresa catari no contrato com a Petropar: calle Jejuy 290 esquina Oleary.
Este endereço já apareceu nesta reportagem. Sede do escritório de advocacia Jiménez Balbiani & Asociados, de Julio Jimenez, vice-presidente do Olímpia e intimamente ligado a Alejandro Dominguez, e de Montserrat Jimenez Granada, a sócia de Alejandro Dominguez na empresa que os dois tem no paraíso fiscal do Panamá. A advogada já citada que o acompanha não só em offshores, mas que está com ele também na Conmebol e antes esteve na Associação Paraguaia de Futebol.
Os documentos da Doha Holding Group obtidos pela reportagem mostram que ela foi aberta em 14 de dezembro de 2023, apenas nove meses antes do contrato com a Petropar, e está registrada no Qatar Financial Centre, que funciona como uma zona econômica especial e centro financeiro no Catar, operando com um sistema jurídico e regulatório independente, em inglês, para empresas de serviços financeiros e não financeiros. De acordo com o Tax Justice Network, ONG inglesa que investiga paraísos fiscais e países com alto grau de sigilo bancário, o Catar, embora não seja um paraíso fiscal, está classificado como um dos países de sigilo financeiro relevante, em 20º no mundo.

Com capital de dez milhões de riais catarianos, equivalentes a US$ 2,75 milhões, a Doha Holding tem como acionista principal o Sheik Khalifa Hamad Al-Thani, que foi emir do Catar até 2013, sendo sucedido pelo filho, atualmente no poder. O secretário Saad Doukali aparece em diversos empreendimentos financeiros.
O DONO DO PARAGUAI
No dia 11 de abril de 2024, uma quinta-feira, às 12h17, as câmeras de uma obra em construção flagraram um homem de camisa social azul e calça num tom mais escuro adentrando um pequeno campo de futebol com gramado sintético, situado na Avenida Molas Lopez, entre San Martin e Dr Cirilo Cáceres, no bairro de Las Lomas.
Aos berros, gritava para os operários do prédio em construção no terreno ao lado do campinho: “Si llego a ver a alguien que invada mi propiedad privada, levoy a meter plomo”. Em bom português: “Se eu pegar alguém invadindo minha propriedade, vou meter chumbo”. Pouco tempo depois, obteve o embargo da obra.

No vídeo, que é parte do processo na justiça paraguaia e foi obtido pela reportagem, o homem, captado à meia distância nas imagens, fala da polícia como se fosse uma instituição a serviço dele, e segue aos berros avisando aos funcionários da obra que se houver invasão da propriedade dele, “vai fazer descerem e serem presos”, sempre enfatizando ser o dono da propriedade ao lado da obra.
A propriedade é de Alejandro Dominguez, o presidente da Conmebol, como está no processo. A entidade de futebol inclusive está citada porque, de acordo com a peça, o dirigente promoveu reunião de interesse particular com a entidade de classe dos proprietários imobiliários na própria Conmebol.
Além de tratar dos assuntos de interesse particular do mandatário, a Conmebol segue o fracasso semanal no combate ao racismo pelos campos do continente. Em 17 de março último, Alejandro Dominguez achou por bem falar sobre eventual ausência de clubes do Brasil na Copa Libertadores da América comparando brasileiros a macacos: “Seria como o Tarzan sem a Chita”. Dezoito anos antes, o pai, Osvaldo Dominguez Dibb, ganhou o prêmio de “Artigo Mais Racista do Ano de 2007”, concedido pela organização de direitos humanos Survival International.
No editorial “Índios na Praça Uruguai”, publicado no La Nacion no dia 13 de setembro de 2007, “ODD” atacou os indígenas, que expulsos por aqueles que tinham tomado suas terras, acamparam entre janeiro e setembro no local. Uma praça, por acaso, vizinha do Crowne Plaza Hotel, de propriedade dos Dominguez. “Um câncer” e “hábitos imundos”, foram alguns dos termos usados por “ODD”. Que prosseguiu em seu texto:
“Um acampamento indígena neolítico bem no centro da cidade é impensável, mas lá está ele, como um câncer perigoso, espalhando maus cheiros, destruição e contaminação. A cidade está sendo punida sem motivo e não deveria ter que pagar por isso. Os indígenas precisam aprender a viver como pessoas ou voltar para a selva.”
O poder dos Stroessner ficou para trás, deixando um rastro genocida, violento e corrupto. Os Dominguez, cúmplices e produtos desse tempo, seguem cada vez mais firmes e se renovando. Inaugurando a terceira geração envolvida em negócios rumorosos. E cada vez mais poderosos. Terras, imóveis, fortuna, justiça, transações milionárias, meios de comunicação. Como donos de um país. Ou mais do que isso. Do futebol no continente. Numa história tão América Latina. Como tantas outras já vistas por aqui, de plata y plomo.
OUTRO LADO:
A reportagem enviou para Alejandro Dominguez, através do departamento de comunicação da Conmebol e também para seu e-mail pessoal, questões sobre os pontos abordados. A Conmebol confirmou o contato mas não respondeu as perguntas e pedidos de comentário, assim como o presidente da entidade, Alejandro Dominguez, e a secretária Montserrat Jimenez.