Muito se fala novamente sobre a intervenção no Haiti. Que tal ouvir o “outro lado”?
Mais uma vez o Haiti.
Lembrado apenas quando há algum interesse em jogo, o Haiti está novamente nas bocas. Bastou o marqueteiro do Temer botar na rua a intervenção (sim, chegamos a esse dia em que uma intervenção militar é tramada pelo marqueteiro) que o país passou a ser evocado. Como exemplo de sucesso em uma intervenção militar.
Mais do que isso: sacramentado como indiscutível experiência de sucesso, sobre a qual não há discussão. E pouco se analisa por aqui, se fez um balanço ouvindo todos os lados…
E lembrado como referência para que algumas experiências sejam repetidas: mandados de busca e apreensão coletivas, e, pasmem, algo amplamente permitido e usado no Haiti: regras de engajamento flexíveis, que possilitassem a eliminação de pessoas com “atos ou intenções hostis” sem nenhuma consequência jurídica aos militares. Nos 13 anos da intervenção, os registros oficiais falaram de 52 investigações contra militares brasileiros. Em 18, respondendo por lesões corporais graves. Todas arquivadas. Claro, outras tantas não registradas, como é de praxe.
Já o primeiro comandante da intervenção, entre 2004 e 2005, general Augusto Heleno, continuamente ouvido pela imprensa nesse momento, foi alvo de insatisfação por parte dos maiores entusiastas da intervenção, por preocupação quanto aos excessos cometidos sob o comando do general, como mostraram documentos vazados pelo Wikileaks. Nos documentos, aparece o então embaixador dos EUA no Brasil John Danilovich pedindo a substituição do general pelos métodos empregados.
Nesses anos todos em que houve a intervenção, começada em 2004, centenas de jornalistas brasileiros estiveram por lá. E embora o mandamento básico do ofício seja “ouvir todos os lados”, invariavelmente, tirando as exceções de sempre, a narrativa era a do lado interventor. O sucesso da intervenção pela voz dos interventores. Críticas e acusações frequentes sobre a intervenção, tais como ter sido responsável pela epidemia de cólera que teve início em 2010 e abusos sexuais por parte de alguns militares não são mencionadas por aqui.
Agora, no momento em que o Haiti é aqui mais uma vez, e, ao contrário dos versos de Caetano não há nenhuma poesia nisso, parece ser hora de lembrar esse preceito básico do ofício: ouvir o outro lado.
Como obviamente não seria possível o desejável “ouvir o outro lado” de uma parcela significativa da população, o outro lado fica por conta de Camille Chalmers, haitiano, economista respeitado no mundo inteiro pela alta qualidade de sua produção intelectual ao longo dos anos, com passagem pelas principais universidades do mundo.
Aqui é preciso uma breve digressão pessoal.
Os trechos de Chalmers sobre a intervenção, o pretendido contraponto a esse senso comum, são parte de uma entrevista que fiz em 2011. Um ano depois do terremoto.
Seu Zé Trajano, estranho ser do jornalismo em extinção, bicho estranho de um tempo nem tão longe em que jornalismo na TV não era sinônimo de gracinha-pastelão-torta-na-cara (que começa a dar, em números, seus sinais óbvios de esgotamento porque não precisa ser muito inteligente pra perceber que isso se esgota em pouco tempo depois da euforia inicial e repercussão fogo de palha, e falaremos disso aqui em breve), estranho sujeito que se incomoda com conceitos massificados a rodo e no porrete, hegemonias de pensamento formadas a ferro e fogo, ainda diretor da ESPN que ele concebeu e fez, um dia naquele ano de 2011 me chamou e falou que ia me mandar pro Haiti. Queria um olhar diferente sobre o país, ver de fato o que acontecia em meio aquele cipoal de reportagens de exaltação da ocupação que chegavam. Tinha o gancho com um evento de esporte e era pra trazer isso e o algo mais.
E lá fui eu. Sabendo apenas de uma coisa: se íamos ouvir o lado da intervenção, também era pra ouvir o “outro lado”.
Foi desse arroubo dessa coisa cada dia mais longe no Brasil, esse tal de fazer jornalismo do Seu Zé, que saiu o documentário “Haiti, o País dos Rest Avec”. Foi de mais uma maluquice santa do Seu Zé que saiu o Prêmio Vladimir Herzog daquele ano para tal trabalho. Tudo nosso, seu Zé. Gracias. E adelante.
Se da intervenção no Haiti muitos querem tirar o modelo para a operação carioca, como modelos se repetissem, muito do que efetivamente ocorreu e ocorre no Haiti também pode ser parâmetro para o que vem por aí em termos de consequência e resultado.
Alguns números e constatação deviam bastar para freiar um pouco esse ufanismo, essa volta do modo “tomada do Alemão” na cobertura da imprensa.
A mais óbvia constatação é: com milhões de dólares investidos na intervenção militar, o Haiti segue em miséria absoluta. Morre-se ainda de cólera, de dengue, de fome e do que mais se imaginar. E de violência também. É de mais do mesmo que estamos falando. É da mesma pergunta que estamos falando: é de sucesso de intervenção militar mesmo que estamos falando?
”Para cólera não há dinheiro, mas para gastos militares sim”Falávamos de Camille Chalmers. Sob o sol de Porto Príncipe, num fim de tarde, (como são bonitos os fins de tarde em Porto Príncipe!), encontrei um sujeito grisalho, meia idade, ar sereno e boa acolhida, para uma longa conversa. Daquelas em que o anfitrião te deixa tão a vontade que em dado momento lembramos ter que gravar. Muito mais do que uma conversa, o privilégio de uma aula com um intelectual fecundo e brilhante. Uma aula das dores e delícias de nuestra América, de mundo, de vida. De colonizadores e de colonizados. De luta e opressão. De heróis e canalhas. De gente e de escroques. De orgulho e vergonha. A antítese do senso comum que vemos agora se repetindo diariamente em nossas telas, palpiteiros oportunistas falando pela voz do dono e do dono da voz. Uma aula daquele “bombagai”, como se chama alguém “gente boa” em crioulo, similar ao nosso “sangue bom”. Um daqueles momentos que guardamos, do tipo, nessa vida fiz isso, fiz aquilo, perdi muito mais do que fiz, conheci e conversei com Camille Chalmers, etc, etc…
Camille é antes e acima de tudo um tiro no senso comum. E com o brilho e preparo de um dos mais brilhantes intelectuais do mundo. Com toda serenidade do mundo, vai discorrendo números, fatos, desencadeando a história, desabrochando processos e simplificando os mais complexos raciocínios, como fazem os grandes.
Diante do rodo que se passa no senso estabelecido do “sucesso da intervenção no Haiti”, Camille é cristalino. Depois de um apanhado histórico no qual demonstra porque se chegou até o que o país é hoje, da independência e do sonho de liberdade autodeterminação do Haiti jamais engolido pelas colônias, chega-se a análise da intervenção. Da fala de Camille, troque obviamente algo do contexto e do cenário, mas fique à vontade para achar um tanto quanto familiar.
Com didatismo demolidor. Que perfeitamente poderá ser uma fala de qualquer um de nós no dia seguinte ao fim da intervenção do Rio. A fala de Camille está destacada em negrito:
“O que é chocante é que quando se vê os objetivos dessa força, proclamados na resolução 1542 da ONU, diz-se primeiro estabelecer clima de segurança, segundo estabelecer eleições democráticas e terceiro, vigiar a respeito dos direitos humanos. Sobre essas três frentes a intervenção é um fracasso total”.
“Os recursos estão sendo investidos para trazer armas, mas não há o que fazer, não há enfrentamento entre dois exércitos, então para que ter força de paz quando não tem guerra civil? O que há de se fazer é uma solidariedade de povo a povo, onde enfermeiras, especialistas em hidráulica, montanha, alfebetização popular, que venham participar”.
“Há todo um processo de desinformação sobre o Haiti, pensam que é um campo de violência, gente se matando na rua todos os dias, e isso não tem a ver com a realidade, é um país tranquilo e quando se vê a disparidade social brutal desse país, é uma gente de paz. Existem 1.200 médicos cubanos aqui, vivendo em comunidades, e nunca se aproximou alguém com ameaça, nunca algum deles foi alvo de um enfrentamento. São amados, esse é o esquema de resposta para países como Brasil, Chile e outros, que deveriam adotar. E atacar os problemas básicos da crise. Alfabetização, saúde pública, reflorestamento e educação. São os quatro segmentos básicos que permitem lançar a economia do país e relançar a sociedade haitiana”
Troque Haiti por Brasil e por que diabos ninguém tem a ideia de em vez de soldados e armas dar escola, saúde pública… Os gastos citados por Camille também cabem em paralelo:
“Estamos numa situação em que temos uma presença militar das Nações Unidas através de 12 mil soldados e polícias, e é uma força militar que está gastando 865 milhões de dólares ao ano em um país onde estamos em situação de pobreza extrema, onde mais de 70% da população vive com menos de um dólar ao dia, e essa pobreza se agravou depois do terremoto, quando as 3 grandes cidades foram golpeadas, a gente perdeu tudo, houve desestruturação total do setor formal, desemprego, há um contraste entre a gente da Minustah, os gastos militares, e as necessidades do povo. A resposta dos EUA ao terremoto foi uma instrumentação militar, chegaram com 23 mil marines, barcos de guerra, para fazer o que?”. Pense nos gastos da intervenção do Rio..
Sobre resultados:
”Quando se anda pelas ruas, mais de um ano e não se construiu nada. É uma vergonha, mas pode se desmascarar o que é a cooperação internacional. A reconstrução do país, o porvir, parte do reconhecimento dos fracassos das políticas impostas até agora e que o ator central do processo é a gente que produz, trabalha e está sempre marginalizado da decisão. Esse é o elemento básico”.
A intervenção militar trouxe uma distorção de prioridades, de acordo com Camille:
“Cito a questão do cólera: Estados Unidos fez pedido de 174 milhões de dólares mas receberam menos de 25% desse dinheiro. Para cólera não há dinheiro, mas para gastos militares sim”.
Qualquer semelhança…
O cenário que se desenha diante de todos os processos que se desenham no governo atual aponta também para um Haiti. De novo, qualquer semelhança…Além de todo o processo desde a independência, Camille cita os resultados das privatizações impostas e os desdobramentos:
“Podemos citar um elemento para explicar esse processo: a produção arrozeira. O Haiti era autosuficiente em cereiais em 1972. Essa situação foi destruída pelas leis de privatização, com importação massiva dos Estados Unidos, com dumpig. O arroz que chega daquele país invadiu o mercado, e passamos da autosuficiencia para a situação atual, onde comemos quase 75% de arros norte-americano. E nos convertemos no terceiro maior comprador de arroz de lá. Isso significa desvio de fluxo de capitais. É exemplo de como as políticas significaram o desemprego maciço que vivem em favelas como Cité Soleil”.
Se não é aqui, o Haiti é logo ali.
Lúcio sou seu fan desde a época da Espn Brasil e do saudoso bate bola mas gostaria de te lembrar que estamos numa guerra civil, sou contra a intervenção do jeita que é porém acho que deveriam ter autorização para matar quem estiver portando um fuzil, eu moro na baixada fluminense mas precisamente em são joão de meriti e percebo a crueldade desses bandidos eles não tem pena das pessoas e depois que são presos voltam pra rua e matam de novo, onde eu moro tem assalto de dia de tarde e de noite, muitos cidadãos de bem estão presos em casa com medo de sair, acho muito bonito o que você ta falando e concordo em parte mas esses bandidos são cruéis e capaz de tudo.
Bravo Lúcio!!
Lúcio, é bom tê-lo em um novo espaço da internet. Belíssimo trabalho.
Pena ver o que a ESPN Brasil se tornou sem Trajano e voce por la.
Abraços e saudaçoes rubro negras
Grande Lúcio de Castro. Quanta saudade de você dos tempos da ESPN…Hoje alguém perguntou por você no Tabelinha. O Seu Zé divulgou o site e cá estou. De cara estou, como se diz aqui em Goiás, “besta”, com a matéria sobre o Hiti. É chocante! Como vivemos num país que controla totalmente a informação e mesmo a gente que “pensa que pensa que burla as normas penais”, somos todos levados pelo arrastão midiático. Valeu demais! Toda sorte do mundo pra você, guerreiro! Ah, sou professor de história do Instituto Federal de Goiás (IFG) na minha cidade Natal, Jataí. Vi todos os episódios do seu belíssimo documentário “O Futebol nos Tempos do Condor”. Obra prima!!! Parabéns!!