Os negócios privados da equipe montada pelo general Braga Netto no combate ao corona vírus
Éuma das áreas mais estratégicas no combate ao corona vírus.
Mas nem assim a possibilidade da existência de conflito de interesse entre o público e o privado foi barreira ou critério para o governo de Jair Bolsonaro realizar nomeações.
No último dia 29 de junho, a edição do Diário Oficial da União trouxe a criação do “Grupo de Trabalho para a Coordenação de Ações Estratégicas de Tecnologia da Informação”, montado “em resposta aos impactos relacionados à pandemia do coronavírus (Covid-19)”, como está na portaria, assinada pelo general Braga Netto, ministro da casa civil. Com a presença de alguns sócios em empresas de informática e tecnologia da informação (TI). Entre eles, a do atual “diretor de monitoramento e avaliação do SUS”, Angelo Denicoli, major do exército na reserva nomeado no ministério da saúde em 18 de maio pelo general Pazuello. Com o histórico de, além de ter uma firma na área, ter representado uma outra que não a dele em uma licitação da Confederação Brasileira de Judô (CBJ). Em pregão comandado por envolvidos em escândalo de corrupção na área de TI.
Até o chamado “Centrão” tem sua cota entre os integrantes: Carlos Roberto Fortner, nomeado por Braga Netto como diretor-presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI) em 3 de junho, já como parte da aliança do governo com a conhecida ala de deputados. A indicação para o ITI é obra de Gilberto Kassab, envolvido em escândalos de corrupção e com forte ingerência sobre a Empresa de Correios e Telégrafos (ECT), os correios. Fortner inclusive chegou a ser presidente da ECT em 2018 e em 2019 virou vice-presidente de operações, até ser nomeado para o ITI. Na manhã de hoje, a Polícia Federal botou em ação operação que atinge executivos da estatal. O indicado de Kassab chegou a ser citado em relatório do TCU publicado em 24 de abril que aponta baixa produtividade na instituição no período em que ele era o vice-presidente de finanças e controladoria e demonstra também “falhas nas contas”.
São esses nomes que agora definem todo o planejamento das medidas do governo na área de tecnologia voltada para a pandemia. Apesar do conflito de interesses entre as ações do ministério e seus próprios negócios, as vagas foram distribuídas para ocupantes com tais ligações. A comissão tem 22 membros, entre titulares e suplentes.
Entre os casos que mais chamam atenção por possíveis conflitos, estão, além do major citado e do indicado do Centrão, os do coordenador do grupo, Luis Felipe Salin Monteiro, e ainda o “diretor do departamento de informática do Sistema Único de Saúde” (SUS/DATASUS), Jacson Venâncio de Barros.
Luis Felipe Salin Monteiro:
É o coordenador do grupo. Consta na base de dados da Receita Federal como tendo sido sócio da “LFM Tecnologia e Desenvolvimento de Sistemas” até 16 de maio de 2019, data em que a empresa é encerrada, conforme documentos verificados pela reportagem. Essa baixa nos negócios particulares só ocorreu dois meses depois que a “Comissão de Ética Pública da Presidência da República” cobrou, em 12 de março, explicações para o conflito de interesses em outro caso semelhante, já que Salin e outros membros tinham sido nomeados para o time de Paulo Guedes na área de tecnologia. Na ocasião, Salin foi nomeado secretário de governo digital na gestão Bolsonaro.
Diretor do departamento de informática do SUS mudou participação societária em empresa de TI às vésperas de assumir no governo Bolsonaroo grupo de trabalho montado pelo general Braga Netto é formado a partir da indicação de dois representantes de diferentes partes do governo, sendo um titular e outro suplente. A dupla indicada pelo general Pazuello, ministro interino da saúde, como sendo os nomes de sua pasta na comissão não ficam por menos na existência de conflito de interesse: os dois tem ligações privadas no setor da TI.
Jacson Venâncio de Barros:
O titular indicado por Pazuello no grupo de trabalho é Jacson Venâncio de Barros, que assumiu o posto de “diretor do departamento de informática do Sistema Único de Saúde” (SUS/DATASUS) no governo Bolsonaro.
De acordo com as informações encontráveis no currículo dele e confirmadas em checagem nos bancos de dados do estado de São Paulo, Jacson Venâncio foi durante anos “diretor corporativo de informática no hospital das clínicas” e “gerente de TI da fundação faculdade de medicina”. Responsável pelas diretrizes de TI de todo o Complexo Hospitalar da instituição.
Os cargos na administração paulista não impediram que abrisse em 15 de setembro de 2016 a “Ulwazi Data Science e Analytics Treinamento e Desenvolvimento de Softwares ltda”, tendo como fim o “treinamento em desenvolvimento profissional e gerencial” e ainda o “desenvolvimento de programas de computador sob encomenda”.
A entrada dele no governo Bolsonaro se dá em 7 de fevereiro de 2019. Ao mesmo tempo em que entra no governo federal, está acontecendo uma mudança discreta: de detentor de 99% das cotas da “Ulwazi Data Science e Analytics Treinamento e Desenvolvimento de Softwares ltda”, Jacson passa a ter, em 1º de fevereiro, 1% apenas e transfere essa parte para a sócia que detinha 1%, como pode ser checado nos registros da junta comercial de SP. Exatos seis dias antes da nomeação federal.
A mudança no status da sociedade de Jacson Venâncio permite um drible no “Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal”, o conjunto de normas que enquadram a participação de servidores públicos federais em eventuais negócios privados. No artigo 6º está: “a autoridade pública que mantiver participação superior a cinco por cento do capital de sociedade de economia mista, de instituição financeira, ou de empresa que negocie com o Poder Público, tornará público este fato”.
Major nomeado por Pazuello como “diretor de monitoramento e avaliação do SUS” tem empresa de TI e já representou uma terceira em concorrência na Confederação de JudôAngelo Martins Denicoli:
O suplente de Jacson Venâncio de Barros no grupo de trabalho para a coordenação de ações estratégicas de tecnologia da informação é Angelo Martins Denicoli. Major da reserva do exército, nomeado pelo general e ministro da saúde Eduardo Pazuello como “diretor de monitoramento e avaliação do SUS” em 18 de maio, quando o ministério passou a ser ocupado por nove militares em cargos estratégicos da pasta. Denicoli ganhou cargo na saúde mesmo tendo postado em suas redes, como mostrou reportagem de Constança Rezende, no UOL em 20 de maio, “fake news” afirmando que “resultados de pesquisas que comprovam que a hidroxicloroquina mata o vírus”, além de uma série de impropérios contra membros do STF e jornalistas.
O major Angelo Denicoli tem em seu nome a Azimutebi Consultoria em Tecnologia da Informação ltda, que tem em suas atividades o suporte em serviços de tecnologia e consultoria. Aberta em 13 de dezembro de 2013 como Sport bi Consulting ltda. Assim como Jacson Venâncio, titular da vaga da pasta de saúde no grupo de trabalho de TI no combate ao covid, o major Denicoli também realizou mudanças em sua empresa privada em abril de 2020, pouco antes de assumir posto no ministério. Seguiu com 99% das ações, mas deixou a função de administrador para a mãe, Maria Denicoli. Também no “Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal” há impedimento para ter participação com administrador em empresa privada. Até mesmo após deixar o cargo público é preciso cumprir quarentena antes de assumir tal função.
Enquanto na ativa do exército, o major Angelo Denicoli foi por muito tempo ligado ao esporte, sendo “gerente de esportes da comissão de desportos do exército brasileiro”. Na função, tinha relação estreita com as confederações das modalidades, viajando ao exterior para acompanhar diversos campeonatos mundiais, já que muitos atletas são ligados as forças armadas. Entre outros, em 2009 acompanhou a copa do mundo de judô feminino, em Birmingham (Inglaterra), entre 29 de setembro e 14 de outubro de 2010. Na primeira quinzena de dezembro de 2009 foi ao Japão para o grand slam da modalidade, também representando o exército.
Antes disso, em 22 de julho de 2009, o major Denicoli tinha estreitado os laços com a Confederação Brasileira de Judô (CBJ), e aparece no site da entidade numa reunião onde representou o exército em nome da comissão de desportos daquela arma, a primeira entre vários encontros que se seguiram até acertarem a parceria feita para os Jogos Mundiais Militares de 2011, que teve o Rio de Janeiro como sede. Na foto da CBJ abaixo, o major Denicoli está junto com Paulo Wanderley Teixeira, presidente da CBJ então e atual número um do Comitê Olímpico Brasileiro (COB). Uma série de reportagens da Agência Sportlight entre dezembro de 2016 e 2019 mostrou uma série de denúncias envolvendo o comando da CBJ na gestão de Paulo Wanderley.
A proximidade com o presidente da CBJ e a participação em uma empresa do ramo não impediram que o major fosse o representante de outra empresa de informática que não a dele mesmo em licitação da entidade esportiva no ano de 2014.
Em 22 de dezembro de 2014, Angelo Martins Denicoli aparece como o representante da MKTEC Consultoria e Serviços, cuja atividade é “suporte técnico, manutenção e outros serviços em tecnologia da informação”,
vencedora de pregão da CBJ em licitação de R$ 82.720,00, equivalentes em valor atualizado pelo IGP-M a R$ 118.199,58, relativos a aquisição de “solução de data discovery”. A maior parte desse preço final foi em “consultoria”. Dos R$ 82.720,00 do preço final a ser desembolsado pela CBJ para a empresa representada pelo Major Denicoli, R$ 46.000,00 se referem a “consultoria”. Mais da metade do valor da licitação.
E mesmo tendo a própria empresa no ramo, o major Denicoli está na licitação como representante dessa outra. Um dos pré-requisitos de “qualificação econômico-financeira” para habilitação de empresas na concorrência era a “prova de capital social igual ou superior a R$100.000,00 (cem mil reais)”, o que impedia a Azimutebi, então Sport Bi Consulting em participar. Já a MKTEC atendia a tal ponto. Em 3 de agosto do ano passado a MKTEC teve sua falência decretada.
Outro ponto que chama atenção na licitação realizada pela CBJ com a participação do major agora no ministério da saúde é quanto aos responsáveis pela condução do pregão que acabou com a vitória dos representados por Angelo Denicoli. No edital de convocação, está dito que “a sessão será conduzida pelo pregoeiro e equipe de apoio, designados pela CBJ”. E já na ata com o resultado, constata-se que a “equipe de apoio” foi formada por Edson Wanderley Teixeira, irmão do presidente da CBJ, Paulo Wanderley Teixeira e Leonardo Barbosa Rosário, citado como “responsável pela análise técnica” da concorrência.
O nome de Leonardo Rosário na equipe de apoio da licitação ganha pelo atual “diretor de monitoramento e avaliação do SUS” chama atenção. No ano passado, já com Paulo Wanderley Teixeira na presidência do COB, o mesmo Leonardo Rosário que respondia pela equipe de apoio nessa e em outras licitações da CBJ de Paulo Wanderely, foi denunciado por uma auditoria, o “Relatório Kroll”, na qual aparece responsável por “atos de corrupção por meio da contratação irregular de dois fornecedores” na área de informática do comitê olímpico, de acordo com o relatório ao qual a reportagem teve acesso.
O possível conflito de interesses da presença de servidores sócios em empresas de TI atuando na mesma área no governo federal se dá em um dos segmentos que mais movimentam verba pública na atualidade e um dos mais suscetíveis a corrupção em razão de características peculiares como a possibilidade de despesas intangíveis tal e qual “consultorias”. Como referência para dimensionar o volume de dinheiro que a área movimenta, em 2018, os gastos do governo federal com TI foram de R$ 8,4 bilhões.
Ter o governo federal como o maior comprador na área teve consequência na geografia dos registros de tais empresas: em um raio de 15 quilômetros da capital federal existem 1.105 empresas de informática que fecharam contratos para fabricar ou fornecer programas de computador e serviços de tecnologia a órgãos federais, tendo 2018 como parâmetro. Boa parte dessas empresas são parte de um universo de firmas de fachada que não produzem nada e existem para servir de atravessadoras comprando produtos para revender a preços mais caros ao governo com alto faturamento.
A reportagem enviou pedido de respostas tanto para o ministério da casa civil, responsável pela criação do grupo de trabalho como para a pasta da saúde. E, após tentar contato com os servidores para falar de suas empresas privadas, enviou por meio dos órgãos onde estão lotados as questões para que pudessem falar sobre a participação e mudanças ocorridas nessas empresas privadas às vésperas de assumirem cargos. As respostas individuais não foram recebidas pela reportagem.
Já os ministérios, através de suas assessorias de imprensa, enviaram respostas genéricas sobre regras para nomeação de servidores e eventuais conflitos de interesse.Vale notar ainda nas respostas que os dois ministérios formularam estão apontadas, entre outras informações, a responsabilidade da outra pasta nas nomeações, em caso de transferência de responsabilidade: o da casa civil fala que “os órgãos federais que indicam os membros para compor o grupo de trabalho devem avaliar”. Já o da saúde diz que “qualquer nomeação para cargo de confiança passa pela análise da Casa Civil e pelos órgãos de Controle, responsáveis por manter lisura e transparência aos processos”. Veja a íntegra das respostas:
Outro lado:
ministério da casa civil (comandado pelo general Braga Netto):
A portaria número 332, de 26 de junho 2020, se refere a designação de servidores para compor o Grupo de Trabalho para a Coordenação de Ações Estratégicas de Tecnologia da Informação e não a nomeações. Este grupo atua no âmbito do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19, coordenado pela Casa Civil, por isso a portaria é assinada pelo titular da pasta. O grupo de trabalho contribui com soluções para o enfrentamento da pandemia com os meios já existentes e disponíveis pelos órgãos federais, não sendo objeto do trabalho de seus integrantes a contratação ou aquisição de equipamentos ou softwares. Cumpre salientar que os órgãos federais que indicam os membros para compor o grupo de trabalho devem avaliar, antes de submeter a indicação, critérios de qualificação profissional, de reputação ilibada e de idoneidade moral para exercer a função.
ministério da saúde (comandado pelo general Pazuello):
Qualquer nomeação para cargo de confiança passa pela análise da Casa Civil e pelos órgãos de Controle, responsáveis por manter lisura e transparência aos processos. Todos os trâmites adotados fazem parte da rotina de administração pública.