Documentos mostram que economia dos “Chicago Boys” no Chile foi sucesso de marketing construído por Estados Unidos e Pinochet mas fracasso nos resultados
Escorados na censura de uma ditadura brutal, nos números postos para baixo do tapete do grande público e na cumplicidade dos Estados Unidos, os “Chicago Boys” venderam ao mundo a ideia de sucesso em suas políticas econômicas nos anos Pinochet. O acerto de contas da história está chegando com a explosão de fracasso do sistema previdenciário, saúde e educação e um ano ininterrupto do “basta” da população chilena em protestos de rua. Documentos pouco conhecidos que agora vão sendo revelados atestam um tão vitorioso quanto falso caso de marketing. E de catástrofe sob o ponto de vista humano.
O resultado da casa que cai é que Pinochet (na foto acima em encontro com o economista norte-americano Milton Friedman) não foi o único cadáver, até aqui insepulto, enterrado no plebiscito realizado no Chile na semana que passou. Com ele estavam os Chicago Boys e o fracasso das políticas econômicas implementadas durante a ditadura chilena (1973/1990). Os únicos propagandistas de um modelo em ruína parecem estar no Brasil: a defesa do ministro da economia brasileiro por algo semelhante a ser posto em prática no país, algo que encontra eco na maior parte dos analistas do tema na imprensa brasileira. Com direito a ameaças em forma de decreto ao Sistema Único de Saúde (SUS), rechaçadas em um primeiro momento mas que seguem na espreita por aqui e irão voltar.
A luz do tempo e os registros pouco conhecidos estão sendo reveladores: de um lado, os Estados Unidos encobriam assassinatos, tortura, campos de concentração e genocídio, em nome de viabilizar o “sucesso econômico exemplar do mercado livre no Chile, o modelo que precisamos promover para servir a uma transição democrática”, como está numa comunicação do então secretário de segurança nacional, Frank Carlucci, para o ex-presidente Reagan, em documentos desclassificado recentemente. Do outro, os estudos produzidos por chilenos e que já mostravam ser fato conhecido de Pinochet e seus comandados o fracasso da política neoliberal lá aplicadas. Ambos esclarecedores sobre uma imagem de sucesso que não corresponde ao processo histórico que ali se deu.
Um documento de 1988, do acervo da Biblioteca Nacional do Chile, atesta o que os anos seguintes e as ruas ratificaram. Com a ditadura Pinochet ainda vigente, o levantamento não circulou no país amplamente. Um conjunto de dados elaborados pela CIEPLAN (Corporación de Estudios para Latinoamérica) demonstra, item por item, o que foi efetivamente a política econômica cantada em louvação por Paulo Guedes, ele mesmo um Chicago Boy e que, embora de forma obscura e integrante de escalão subalterno, esteve ao lado do ditador sanguinário neste período. Deturpados muitas vezes para dizer o que os arautos do neoliberalismo daquela ditadura queriam dizer, sob a luz de análise mais rigorosa e de forma comparativa com outros momentos daquele país, tais números não deixam dúvida sobre os anos Pinochet na economia.
Um retumbante fracasso, como está no documento, que aborda comparativamente dois períodos na maior parte dos gráficos: de 1960 a 1970 comparados com os anos entre 1974 a 1985. Considerando que a década de 60 é o pré-Pinochet e Chicago Boys, e 1974/1985 já é com o ditador. Sendo que o modelo dos Chicago Boys começa em 1975. Alguns pontos merecem destaque em seu fiasco, com as perdas da população nos anos do neoliberalismo:
Como educação (em 1985, o gasto realizado em educação era 24% menor do que em 1970, pré-Chicago Boys e Pinochet), saúde (em 1985, o gasto em saúde era 36% menor do que em 1970), moradia (em 1985, o gasto em moradia era 34% menor do que em 1970), poder aquisitivo dos salários (em 1985, o poder aquisitivo dos salários tinha perdido 15% do seu poder em relação a 1970), salário mínimo (em 1987, o salário mínimo tinha chegado a 40% de queda em relação a 1970), desemprego (nesse quesito, a taxa que tinha ficado em 6,4% entre 1960 e 1970, chega a impressionantes 34,6% em 1987) e a previdência social.
Nota sobre previdência social: Como o estudo do CIEPLAN em questão é de 1988, com a ditadura ainda vigente, e o novo modelo de previdência privada tinha se iniciado em 1981, o documento ainda não tinha dados mais conclusivos, até porque a massa de pensionistas que começou a contribuir com tal forma só iria começar a produzir os primeiros aposentados para comparação mais efetiva anos depois. E o que se viu causou impacto: em 2015, a Fundação Sol, organização independente chilena que se dedica a análise de economia e trabalho, mostrou que 90,9% começaram a receber 149.435 pesos (cerca de R$ 694,08 no ano da pesquisa). Os cálculos foram realizados com base em informações da Superintendência de Pensões do governo. Boa parte da pauta dos protestos que começaram em 2019 e seguiram até aqui, conquistando o direito de realizar-se uma nova constituinte, era a previdência social e a absoluta incapacidade do modelo privado em garantir um mínimo de dignidade necessária aos idosos. Os chilenos foram cobaias do modelo de previdência defendido pelos Chicago Boys.
A CIEPLAN, autora do estudo, foi criada em 1976, já em plena ditadura Pinochet, para elaborar trabalhos sobre políticas públicas no Chile e na América Latina. Não tinha o caráter da ODEPLAN (Oficina de Planificação), esta sim o órgão governamental responsável pela elaboração e execução das políticas governamentais.
Como, ao contrário da turma de Chicago Boys onde Paulo Guedes figurava no quinto escalão, os integrantes da CIEPLAN vinham de diferentes formações e se tornaram a principal voz dissonante destes no campo teórico econômico. Na verdade, em tempos de absoluto autoritarismo, eram a única voz dissonante. Dissonante, mas nem tanto. Ou nem tanta voz assim, como veremos.
Um curioso caso aconteceu, e que demonstra como foi cuidadosamente elaborado o projeto de marketing que tornou o modelo neoliberal ou monetarista, inspirado em expoentes daquele modo como Milton Friedman: o espaço de pensamento dos integrantes da CIEPLAN ficava restrito a revista Hoy. Que com sua pouca circulação, não atingia a população em geral, portanto, mesmo qualquer eventual voz dissonante estava sob controle e risco calculado. Já as formulações da turma da ODEPLAN e dos Chicago Boys, eram exaustivamente rodadas em todos os órgãos de comunicação do país.
E com o tempo, os economistas da CIEPLAN foram deixando de ser quase dissidentes e afinando o pensamento com os “Chicago Boys”, como conta o chileno José Ossandón, professor de “Organização de Mercados” da Copenhagen Business School, em contato com a reportagem.
“Os membros da CIEPLAN (economistas de centro), tiveram que deixar as universidades mas não foram exilados. No início eram muito críticos das políticas da ditadura. Mas como a CIEPLAN escrevia tecnicamente, foram aceitos como um interlocutor legal. Obviamente eles tinham que atuar cuidadosamente. Com o tempo esse diálogo foi se transformando em um conjunto de acordos que terminaram sendo chaves para entender a política de governos da “Concertación” pós-ditadura. De cara, o primeiro-ministro da fazenda foi Foxley (Alejandro Foxley, ministro da fazenda entre 1990 e 1994), que era líder histórico da CIEPLAN”, conta Ossandón.
O professor da universidade dinamarquesa, assim como outros economistas e historiadores, não tem dúvida em apontar que o Chile e sua população foram, antes de qualquer coisa, as grandes cobaias do mundo na implementação de um sistema tão radical que se dá antes mesmo da queda do muro de Berlim.
Manuel Gárate, também economista chileno, aponta que um modelo como o estabelecido no Chile “só pode ser produzido com tal nível de profundidade dentro de um marco político autoritário e repressivo”. Não é a única semelhança que toca o Brasil atual e os desejos de Paulo Guedes e Jair Bolsonaro. José Ossandón destaca ainda o arcabouço ideológico por trás do estabelecimento de tal sistema. “Temos o encontro de dois discursos à primeira vista quase antagônicos: a justificativa do modelo de Friedman e o catolicismo. Nessa confluência foi chave a chegada, junto com os Chicago Boys, de movimentos tais como “Os Legionários de Cristo” e a “Opus Dei”, que encontraram generosa acolhida na elite local”, diz. Transpondo-se ao Brasil de hoje, qualquer semelhança da utilização da fé como pilar para tal êxito não é mera coincidência.
A repressão e o autoritarismo de Pinochet juntaram-se a vista grossa e cumplicidade dos Estados Unidos. Não só dos formuladores como Milton Friedman e os “Chicago Boys”, como do próprio estado. Para que o Chile pudesse instaurar tamanha transformação e fim de tantos direitos dos trabalhadores, instaurando um regime repressor que matou, torturou e perseguiu vozes dissidentes, foi necessário que os Estados Unidos fechassem os olhos para o genocídio que ocorria inclusive em campos de concentração como o instalado no Estádio Nacional de Santiago.
Um documento do acervo da Universidade George Washington (EUA), desclassificado apenas em 2016, não deixa dúvidas: era preciso ignorar qualquer noção de direitos humanos e civilização para não atrapalhar o que chamaram de “sucesso do mercado livre, o modelo que precisamos promover para servir a uma transição democrática”.
O marcante documento, uma comunicação feita pelo secretário de segurança nacional Frank Carlucci ao então presidente Reagan, dá conta do quanto se conhecia a barbárie instalada no Chile, da repressão e do genocídio de Pinochet. Mas sugere que os Estados Unidos lavem às mãos e finjam não saber de nada e sequer participem de resoluções de repúdio da ONU, que chamam no documento de “resoluções hipócritas”.
“Associar-nos a resoluções hipócritas de direitos humanos UNGA (United Nations General Assembly/Assembleia Geral das Nações Unidas) daria a populares nacionalistas um grito de guerra como também faria nossa oposição aos empréstimos ao Chile no Banco Mundial. Além disso, as ações econômicas prejudicariam o sucesso econômico exemplar do mercado livre no Chile, o modelo que precisamos promover para servir a uma transição democrática”, diz a correspondência. Assim, em nome do “livre mercado”, os Estados Unidos foram cúmplices da barbárie que transcorreu naquele país nos anos Pinochet.
A influência norte-americana foi maior ainda. Ou melhor, total. Se no dia 24 de abril de 1975 foi lançado o “Plan de Recuperación Económica”, com todas as diretrizes da cobaia de estado neoliberal, hoje se sabe que três dias antes havia chegado uma carta de Milton Friedman para o ditador. Nela, o elogio ao receituário do que viria a ser aplicado não deixa dúvidas: que se bote fim aos direitos dos trabalhadores. Friedman ensina o que viria a ser feito, e que Paulo Guedes repete, décadas depois, no Brasil atual:
“A eliminação da maior quantidade possível de obstáculos que hoje impedem o desenvolvimento do livre mercado. Por exemplo, suspender, no caso de pessoas que vão se empregar, a lei atual que impede a demissão de trabalhadores. Na atualidade essa lei causa desemprego”.
Tudo o que os mentores e seus Chicago Boys receitaram estava no “El Ladrillo”, o programa que foi a base para o que veio depois. Morto e enterrado enfim no último plebiscito, onde a população disse não a todos esses anos sob a sombra dos Chicago Boys e suas políticas. Que agora renascem no Brasil. Sob Paulo Guedes, militares, Jair Bolsonaro e boa parte da imprensa brasileira.
Mercado livre e/ou neoliberalismo é só uma nomenclatura usada para soar simpático a realidade por trás de toda essa patranha político, social e econômica. Mas o termo correto seria neocolonialismo.